As habitações de Miróbriga
e os ritos domésticos
romanos
À Mariana, para que os Lares a protejam
(Adaptado do artigo publicado com o mesmo nome)
Ao darmos notícia das habitações escavadas em Mióbriga, nos anos 90, bem como dos rituais domésticos associados às mesmas, gostaríamos de retomar a reanálise do aglomerado urbano a que, durante anos, foi conferida uma função de "Santuário Rural".
D. Fernando de Almeida fundamentava a sua opinião na concentração de templos nesse
oppidumromanízado e no desconhecimento de zonas habitacionais que comprovassem a existência de uma grande população fixa. O conceito de santuário rural remetia à ideia de um local fundamentalmente destinado a peregrinações, sendo mesmo algumas das suas infra-estruturas justificadas apenas como local de distracção dos peregrinos, a exemplo do circo.
A sacralidade sustentava, portanto, a importância do local, conferindo-lhe de
per si uma excelência no contexto nacional.
A equipa luso-americana, que escavou em Miróbriga na década de 80, se bem que admitindo a ideia de se tratar de uma cidade com as características comuns às provinciais, coloca, contudo, a tónica, na sacralização do local, que, já em período pré-romano, distingiria o aglomerado, atribuindo mesmo a uma das construções de forma inicialmente quadrangular a função de um templo da II Idade do Ferro, datado do século IV a.C.
Numa última fase, datável de cerca de 100 a.C, o templo teria sído reedificado, sendo dotado de
pronaos,
cella e
temenos, correspondendo a esta fase o "depósito votivo" a que seguidamente faremos referência.
As plantas do edifício, de diferentes épocas, e o espólio arqueológico aí encontrado, nomeadamente o aparecimento de duas malgas invertidas de cerâmica, uma delas contendo ossos de pássaro, teriam feito chegar a tal conclusão.
No entanto, e tendo em atenção as escavações mais recentes, gostaríamos de salientar que a malga com ossos que serviu como um dos "suportes arqueológicos", pelas características de oferenda votiva, que permitiu atribuir a designação de "templo" à última fase da construção da II Idade do Ferro, poderá não corresponder linearmente à existência de uma construção de "função sagrada".
Deverá tratar-se apenas de uma edificação que foi sacralizada num determinado momento, como se pode concluir através do aparecimento de espólio de caracter votivo ou fundacional noutras áreas do aglomerado urbano.
Para especificar esta ideia, gostaríamos de referir que em escavações promovidas, nos anos 90, na "zona habitacional", apareceu, ao nível da fundação de duas construções romanas, enterrada no afloramento xistoso de base, uma tigela ou
patella invertida contendo no seu interior ossos de pássaro que pensamos poder tratar-se também de um ritual fundacional. Numa outra área, uma segunda tigela, também invertida, mas sem depósito votivo no seu interior e vários fragmentos enterrados de pratos/frigideiras e de uma terrina poderão indiciar uma intencionalidade ritual.
Para este tipo de tigela ou
patella de calote esférica encontrada em Miróbriga existem inúmeros paralelos, a exemplo dos espécimes provenientes de necrópoles romanas do Alto Alentejo, conhecidas sob a designação de taças ou malgas.
Aparecidos também em Miróbriga são dois exemplares de características muito semelhantes e que se encontram em depósito no Museu Municipal de Santiago do Cacém.
Leite de Vasconcelos dá-nos notícia de "uma tigela de barro grosseiro, cuja forma é o protótipo das nossas Malgas", encontrada nas proximidades de Miróbriga, que aparenta semelhanças com a taça exumada nas escavações de 1995.
1. O aglomerado urbano e as habitações identificadas em antigas escavações
Pelas características peculiares do urbanismo de Miróbriga, não é possível visualizar qualquer resquício de uma malha urbana definida por eixos viários principais —
cardo e
decumanus, como é comum nas fundações latinas de plano ortogonal. No entanto, os arruamentos conhecidos, de características homogéneas em todo o aglomerado, pois são construídos com grandes lajes assentes directamente no solo, medindo 10-11 pés de largura, permitem-nos delinear o espaço ocupado por algumas das
insulae, ou quarteirões, da cidade onde se instalam
aedificia privata e definir os percursos de acesso a alguns dos seus núcleos polarizadores, como é o caso das
opera publica conhecidas em Miróbriga - fórum e
balnea.
Recentes trabalhos de prospecção e escavação, sob coordenação de Féliz Teichner vieram confirmar a ideia já por mim defendida de que Miróbriga deveria ser ocupada quase em toda a sua extensão numa área de aproximadamente 10 hectares.
Ao longo dessas calçadas e entre elas desenvolviam-se assim os bairros onde se implantavam as áreas comerciais e habitacionais.
A maioria desses quarteirões, parcialmente postos a descoberto por D. Fernando de Almeida, está pouco clarificada, como acontece em torno do fórum e na zona por onde se faz a entrada actual nas ruínas.
Se bem que mal conhecidas, algumas das construções que se desenvolvem, quer a Oeste,
quer a Este do centro cívico permitem-nos admitir, contudo, que aí existiria uma zona comercial e habitacional.
No declive a Sul do fórum e numa das calçadas que o circunda pelo lado noroeste parece ser óbvia a associação das actividades comerciais à arquitectura doméstica, porque é clara a existência de mais do que um piso, admitindo-se que o primeiro andar pudesse funcionar como habitação.
Dos restantes edifícios também denominados como
tabernae — como é o caso dos que se desenvolvem do lado norte da calçada que desce em direcção às termas — poucas ilações se conseguem tirar, porque apenas são visíveis os vestígios de muros de compartimentos unicelulares, sem aparente ligação. No entanto, as características da sua planta — na sua maioria, um só compartimento ocupa o piso térreo — e das soleiras da porta — onde não são visíveis encaixes para as portas, mas apenas uma ranhura ao longo de coda a soleira — permite admitir que as
tabemae seriam fechadas por tapumes de madeira movíveis que se fixam às soleiras das portas, como é o caso dos
Termopolia de Herculano.
Uma outra edificação de que há apenas existe uma pequena referência publicada e que foi apenas parcialmente escavada pela equipa luso-americana a nordeste do fórum desenvolvia-se em torno de um
atrium. Esse átrio e a existência de colunas que delimitam uma zona porticada fazem-nos aceitar a possibilidade de se tratar também de uma habitação.
Um outro núcleo de construções, localizadas junto às termas, foram publicadas por Maria de Lurdes Costa Arthur, na década de 40, como tratando-se de habitações, estando actualmente, na sua maioria, de novo soterradas. No entanto, ao longo do troço de calçada que se dirige às termas, são visíveis de um lado
tabernae e, do outro, restos de soleiras de portas e vestígios de muros alinhados que indiciam a existência de várias edificações.
Esta investigadora admitia a fundação céltica do aglomerado que teria sido ocupado até ao século IV, quando foi possivelmente destruída por um incêndio. Também de um lado e do outro da calçada que se encontra logo à entrada actual das ruínas, são visíveis várias
insulae, que parecem ter tido uma ocupação sucessiva entre os séculos I d.C. e o século IV d.C.
Das escavações coordenadas por José Olívio Caeiro, nos anos 80, nessa área e na área limítrofe à capela de S. Brás, apenas existe uma pequena notícia, tendo sido somente algumas das pinturas a fresco objecto de publicação pela equipa de Missouri, situação essa que dificulta a contextualização dos vestígios.
Contudo, é claro que aí uma ampla calçada é estruturante de uma extensa área habitacional que se desenvolve, quer para Norte, quer para Sul da mesma, sendo visíveis as respectivas condutas dos esgotos em
opus incertum pavimentadas com
lateres.
Do lado sul constata-se que as múltiplas casas se adaptam à pendente e que os desníveis são vencidos através de grandes escadas que permitiam o acesso pedonal à via. Muito possivelmente, numa zona mais baixa do casario, se desenvolveria uma outra via que poderia fazer a ligação, mais a sul, às termas.
Apesar do conhecimento incipiente das zonas habitacionais existentes nessa área, pode-se verificar que as
insulae dessa zona são de métricas diferentes, em função das ruas e acessos públicos, variando entre 25 a 30 m1. As escadarias que se desenvolvem a Sul desta delimitam claramente
insulae, em torno das quais se pode ainda ver o respectivo sistema de esgotos.
A sua organização adapta-se perfeitamente à topografia deste sítio, implantando-se o casario em plataformas artificiais, que desde o ponto mais alto, onde se sobreporá no século XVI a Capela de S. Brás, a Norte da via, até à zona mais baixa, a Sul da mesma, formam como terraços.
A Este desta construção, ao longo da via, quer do lado norte, quer do sul da mesma, são visíveis vários muros dispersos, devendo tratar-se de habitações. No entanto, como todos eles foram postos a descoberto em anteriores trabalhos arqueológicos, através de valas abertas paralelamente aos mesmos, nada se pode concluir, porque nenhuma planta foi integralmente clarificada.
Na maioria das construções identificadas como
tabernae, os pavimentos são de
opus signinum, como acontece nas edificações junto à calçada que se dirige às termas, e nas zonas comerciais circundantes do fórum.
A mesma situação verifica-se em algumas das construções da "zona habitacional". No entanto, em muitas delas não é visível qualquer vestígio do mesmo, admitindo-se que, em alguns casos, fosse de madeira.
2. As áreas escavadas nos anos 90: a domus localizada na zona limítrofe da capela de S. Brás e as construções a noroeste do núcleo urbano
Na zona limítrofe da Capela de S. Brás, do lado norte da via por onde actualmente se faz a entrada nas ruínas de Miróbriga, iniciou-se em 1996 uma escavação numa área que já havia sido parcialmente assinalada pela equipa luso-americana, e que veio a revelar a existência de uma
domus.
Desenho: Armando Guerreiro
Essa extensa construção desenvolve-se para Norte, em torno de um átrio.
Este átrio tinha uma zona coberta possivelmente porticada, como o comprovam a concentração de telhas no local e os entalhes regulares definidos no afloramento xistoso, que deveriam servir para apoiar o telhado. O pavimento da zona circundante do átrio era revestido a
opus signinum, ou formigão, ainda visível em alguns pontos. Na zona central, a céu aberto, subdividida num segundo momento da ocupação da casa, poderia ter existido uma pequena zona ajardinada.
Por seu lado, os pavimentos das salas que se desenvolvem em seu redor deveriam ser feitos com traves de madeira, pois não existe qualquer vestígio de revestimento e o afloramento xistoso é bastante irregular, o que aliás é comum a algumas das residências localizadas nesta área.
A evidência de vários orifícios circulares escavados no xisto, no interior de alguns compartimentos da residência que escavámos, assemelhando-se a "buracos de poste", mas distribuídos sem qualquer aparente regularidade, contribuem para colocar esta hipótese, se bem se possa admitir uma outra funcionalidade para os mesmos.
Numa destas concavidades estava perfeitamente conservada, no compartimento localizado
à entrada da casa, ao nível da rocha de base, que havia sido escavada propositadamente para o efeito, uma tigela ou
patella invertida, contendo no seu interior ossos de galinha, que pensamos poder tratar-se, efectivamente, de um ritual fundacional. A tigela invertida tinha em seu redor fragmentos de cerâmica que aí foram colocados intencionalmente para calçar e proteger a peça e, por cima, tinha terra.
Em alguns dos compartimentos centrais desta construção são visíveis estuques, mas não
foram identificados quaisquer indícios de pinturas a fresco, até porque a casa se encontra praticamente ao nível das fundações.
A única excepção trata-se de alguns muros mais altos construídos cm
opus incertum, no limite oeste da mesma.
A atender-se aos poucos vestígios de derrube das construções (ao contrário do que acontece com os materiais de construção cerâmicos dos telhados — imbrices e
tegulae), pode deduzir-se que as pedras devem ter sido roubadas e reutilizadas, situação essa bastante comum em Miróbriga, fundamentalmente nos locais em que o acesso era mais fácil, como os que se situam nos pontos mais altos, junto à actual entrada. Nas construções recentemente escavadas pudemos confirmar esta hipótese, havendo mesmo casos onde apenas restaram os negativos dos muros.
Ainda atendendo aos escassos muros que se conservam com uma maior altura, nada nos
permite concluir que pudessem os restantes ter sido edificados em adobe ou taipa.
Esta
domus poderia ter tido dois pisos, porque se adossou, do lado oeste, uma escada, que deveria dar também serventia às construções que se desenvolvem num plano mais elevado, a Noroeste da habitação. Dessas edificações foram já postos a descoberto alguns muros, cujas fundações são ligeiramente enterradas no afloramento xistoso, que foi escavado para permitir uma maior estabilidade ao edifício. Também aqui muitos deles se encontram somente ao nível da fundação.
Entre a calçada, que se desenvolve a Sul, e a soleira da porta de entrada da "construção de átrio" escavada, existe um pavimento em
opus signinum, desaparecido em grande parte, que permitia um acesso mais confortável e higiénico à mesma. É junto a esta zona que desaguavam as águas drenadas por uma conduta de imbrices.
Se bem que tenha sido encontrado um numisma republicano, a maioria dos materiais
arqueológicos provenientes desta construção apontam para uma ocupação que vai do século I à segunda metade do século V d.C.
A escavação na íntegra desta casa e das adjacentes é fundamental, pois só ela permitirá a compreensão de uma
insula de Míróbriga.
E, no entanto, de salientar que a planta desta habitação já parcialmente escavada é paralela à da capela de S. Brás, edificada, a Noroeste, ao lado e sobre estruturas romanas, devendo pertencer ao mesmo programa urbanístico.
Os restos de uma casa romana, escavada por José Olívio Caeiro, nos anos 80, e que são ainda visíveis junto à capela, pertenceriam, portanto, a um conjunto residencial mais vasto que se estendia do lado norte da calçada, adaptando-se ao declive natural do terreno.
Numa área a Oeste da actual entrada de Miróbriga, iniciaram-se, em 1997, trabalhos arqueológicos, tendo sido inicialmente feitas algumas sondagens para averiguar da possibilidade de aí ser construído o que veio a ser o "Centro Interpretativo ". A superfície foi encontrada uma moeda de Marco Aurélio e, já pertencente a um nível arqueológico bem selado, de fundação de algumas construções, foi encontrado um outro, cunhado em Mérída no reinado de Augusto.
Se bem que grande parte da área escavada se tenha vindo a manifestar estéril do ponto de vista arqueológico, é um facto que nessa zona foram implantadas duas construções que nos parecem estar articuladas com a "área residencial", pois obedecem praticamente à mesma orientação das casas localizadas na área limítrofe da capela de S. Brás.
Entre estas zonas deveria haver uma outra calçada que, embora não seja visível nas proximidades da área escavada, é um facto que dela restam ainda algumas lajes, junto ao caminho de terra batida, por onde se acede pelo lado poente das ruínas à zona adjacente às termas.
Na zona limítrofe de uma dessas construções, detectou-se uma enorme concentração de escória, associada a uma terra barrenta que foi sujeita a alta temperatura, porque se encontra cozida, como se de terracota se tratasse. Deveria tratar-se, também, de uma zona onde existiam ateliers metalúrgicos.
De salientar que já Cruz e Silva havia referido a existência de fornos siderúrgicos de grandes dimensões: 2,30 m de diâmetro e 4,60 m de altura, se bem que não tenhamos elementos que nos permitam localizá-los.
Uma das edificações escavadas na zona a que nos vimos a referir, a localizada mais a Sul, tem uma planta cujos compartimentos se parecem organizar em torno de uma área com uma centralidade funcional, pois por ela se acede a outras zonas da casa.
Nesse compartimento central que se situa encostado ao limite oeste da construção, surgiram lajes calcárias alinhadas, localizadas apenas junto aos muros, parecendo tapar um sistema de canalização ou drenagem de águas.
Para a construção da casa, edificada em
opus incertum, foram feitas fundações escavadas no afloramento xistoso.
Para permitir a impermeabilização das construções, implantadas numa zona de grande pendente, os muros limite foram revestidos na sua zona mais baixa por uma camada oblíqua de
opus signinum. Esta situação é também comum a outras edificações de Miróbriga, bem como na entrada dos
Balnea.
Admitimos que em alguns dos compartimentos destas construções o pavimento deveria ser de madeira.
Numa dessas edificações, localizada mais a Norte, num compartimento onde não era visível qualquer pavimento, foram encontrados vários alvéolos escavados no xisto, contendo alguns deles cerâmica depositada.
No interior de um deles que se encontrava preenchido por uma terra pouco compacta misturada com grogue, encontrou-se também uma tigela ou
patella fragmentada, numa deposição invertida, análoga à acima descrita na
domus. A sua tipologia é também similar à da
domus, se bem que sem qualquer depósito no seu interior.
Relativamente próximo, surgem três alvéolos anexos, contendo terra pouco compacta no
seu interior. Num deles apareceram depositados, numa posição que se verificava claramente voluntária, vários fragmentos de cerâmica comum. No bordo do alvéolo, numa situação que poderá já deixar dúvidas quanto à intencionalidade de deposição, surgiu um outro bordo de uma taça.
Num segundo, encontrava-se parte de um recipiente, fragmentado de grandes dimensões em cerâmica comum de excelente qualidade, que possuiria tampa dado o encaixe que apresenta na parte superior do bojo. Este vaso era decorado cora duas bandas de guillochis e possuía fundo em pé-de-anel pouco acentuado. Ao contrário das anteriormente referidas, esta peça não se encontrava invertida e no seu interior havia um grande bloco de quartzo.
O terceiro alvéolo não possuía qualquer deposição.
Na área central do compartimento existia uma extensa depressão formando um L, também
escavada no xisto, com uma profundidade análoga à dos alvéolos, com cerca de 15cm em média, que continha uma terra pouco compacta com pequenos restos de cerâmica comum, grogue, um bordo cerâmico e um pequeno fragmento de vidro. Neste caso, a admitir-se que se trata de uma área funcional, não estamos perante uma deposição intencional, mas de um enchimento posterior à sua possível utilização em articulação com o dreno anteriormente referido.
Admitindo-se esta interpretação, e considerando esta
sigillata como terminus post quem para a desactivação desta "vala", a utilização deste espaço como área funcional é, portanto, anterior ao século II d.C., o que nos leva a concluir que a ocupação desta área do
oppidum romanizado se deverá ter processado desde bastante cedo, não conferindo, portanto, à zona onde foi implantado o fórum o papel único de polarizador do crescimento de Miróbriga em período de dominação latina.
Tacinhas enterradas no xisto. Escavação coordenada por Filomena Barata
Para confirmar tal hipótese podemos referir a existência do numisma augustano já anteriormente citado e de alguns fragmentos de cerâmica campaniense encontrados nas zonas limítrofes das construções escavadas.
Desenho: José Carlos Quarema
3. O significado votivo das oferendas enterradas
As oferendas enterradas numa fossa (bóthros) ou no solo dirigem-se, no universo romano, genericamente ao mundo dos mortos, quer se tratem de divindades infernais, quer de cultos de fundação ou rituais iniciáticos, cuja finalidade é a esperança na ressurreição e na vida eterna.
Os cultos fundacionais, por seu lado, têm como modelo o exemplo do mundus, a mítica fossa onde os companheiros de Rómulo, fundadores de Roma, haviam colocado terra dos seus locais de origem e outros bens necessários.
Para situações como as de Miróbriga de oferendas enterradas, pertencentes aos sacraprivata, existem inúmeros paralelos, entre os quais citaremos o de Tolegassos, na região das Ampúrias, publicado por Josep Casas e Ruiz de Arbulo, na sua maioria contendo ovos ou galináceos no seu interior.
Se os ovos, que representam a fecundidade ou a força genésica primordial, portanto, a própria ideia da vida, da eternidade ou da ressurreição, acabam por pertencer a um dos mais comuns motivos decorativos quer de bens de utilidade doméstica quer de elementos arquitectónicos — os óvulos — ou mesmo em pinturas domésticas, como é o caso dos larários de Pompeios ou de Delos, também a representação de galináceos, se bem que não tão vulgar, é relativamente comum nos utensílios domésticos. Apenas a título de exemplo, é de referir que só no depósito votivo de Santa Bárbara apareceram cinco Iucernas com galos a decorar o disco (Maia e Maia, 1997, p. 105).
Também é sobremaneira conhecida a utilização de aves e de galináceos na consulta aos auspícios e em vários sacrifícios rituais religiosos, mistéricos, iniciáticos e funerários.
Base de estátua do templo imperial, Museu de Évora
Para a interpretação dos auspícios, a observação dos pássaros em voo e, principalmente em finais da República, a análise do comportamento dos frangos sagrados eram as técnicas mais utilizadas, existindo mesmo um ptdlarius encarregado de observar estes últimos. Nos sacrifícios o galo era consagrado quer aos deuses solares, como Apoio, quer aos lunares. É também o animal de Mercúrio, que, por vezes, é representado cavalgando um galo. É a ave votiva típica de Esculápio, sendo comummente sacrificada a essa divindade.
No caso das oferendas enterradas de carácter mais funerário, como é o caso da patella invertida de Miróbriga, poderemos admitir que se revestissem de um carácter apotropaico, unia vez que, deste modo, os Romanos tentavam libertar-se da vingança ou maldição dos espíritos irritados dos seus Manes e, assim, proteger as habitações de qualquer influência maléfica.
Esta tradição de proteger a entrada da casa contra as influências nefastas, sobretudo o umbral da porta, tem em Roma uma tradição arcaica, muito provavelmente de origem etrusca.
As oferendas poderiam ainda contribuir para honrar e apaziguar o genius, que, como princípio de fecundidade genésica, assegurava através do indivíduo a que estava vinculado, a perpetuação das gerações.
Se bem que apenas uma das oferendas de cerâmica recentemente encontradas contivesse
restos faunísticos de um galináceo, com funções claramente apotropaicas, podemos, no entanto, admitir que as cerâmicas enterradas da zona recentemente escavada contivessem apenas terra, que funcionava como uma referência ao mundus.
As tuas "tacinhas" ou malgas encontradas na zona designada pela equipa luso-amerícana
como "templo proto-romano" poderiam tratar-se, também elas, de depósitos votivos fundacionais, até porque embora apenas uma contivesse ossos de ave, ambas se encontravam invertidas e com o fundo partido, situação que aliás é comum a outras deposições, onde foram utilizados vasos usados ou mesmo parcialmente fragmentados.
Relembro ainda que segundo a mitologia Clássica considera-se que o Universo surgiu a partir de um ovo Cósmico semelhante ao de um pássaro, mas muitos outros povos, como os chineses, os indus, finlandeses, japoneses, índios americanos, povos africanos,têm a sua cosmogonia derivada do ovo, a que se associa a ideia de fertilidade, nascimento e ressurreição, como se pode confirmar nos tradicionais ovos de Páscoa.
Fotografia a partir de: http://archaeology.org/issues/135-1405/artifact/1964-turkey-sardis-egg-bowl-magic
Por sua vez as aves e pássaros são considerados mensageiros dos deuses ou símbolo de verdades ocultas só ao alcance dos inciados, motivo pelo que o deus dos viajantes, Mercúrio, na mitologia romana,(associado ao deus Grego Hermes)tem um capacete e pés alados. Esta divindade era mensageiro de Júpiter e deus da venda, lucro e comércio, pelo que é notória a associação do seu nome à palavra Mercadoria ("merx"), mas também dos ladrões. É também a personificação da eloquência e da inteligência. O planeta Mercúrio deve-lhe o nome muito possivelmente porque se move como a divindade rapidamente no céu.
Não é, portanto, de admirar porque tenham sido também atribuídas por outros povos antigos designações de pássaros a muitas constelações como "constelação do Corvo" - no céu austral próximo ao Equador; do "Cisne" que era inicialmente chamada de "Galinha"; da "Águia" - o pássaro de Júpiter; do "Galo", do Ganso, da Pomba.
A Via Láctea é, por sua vez, considerada o "Caminho dos Gansos Selvagens" entre os povos nórdicos.
Fica assim justificada simbolicamente a necessidade de fazer enterramentos com ossos de aves ou galinácios com valor apotropaico em rituais fundacionais, a exemplo do que acontece nas habitações de Miróbriga ou do que foi designado pela equipa luso-americana como "Templo da Idade do Ferro".
Adaptação a partir de :
Maria Filomena Barata, 1999, «As habitações de Miróbriga e os ritos domésticos» in REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. Volume 2.Número 2.