Filomena Barata
Um bom Ano 2018 com os Deuses
«Presépio de Trono ou de Altar» em figurado de barro policromado, oriundo das olarias de Estremoz, classificado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Ao centro, São José ajoelhado segurando o seu caraterístico bastão florido; o Menino deitado num berço onde pousam pombas; Nossa Senhora ajoelhada e de mãos postas com a cabeça coberta por um manto. No patamar superior os três Reis Magos: Melchior oferecendo Ouro, como reconhecimento da Realeza do Menino Jesus; Baltazar trazendo Mirra, como reconhecimento da Humanidade do Menino Deus e Gaspar levando Incenso como reconhecimento da Divindade do Menino Jesus. No patamar inferior três pastores, apresentando-se o do meio ajoelhado e de mãos postas e os restantes oferecendo um cesto de aves e o outro um cordeiro.
Fotografia e comentário da mesma:
http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=136495 . Museu Nacional de Arqueologia.
http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=136495 . Museu Nacional de Arqueologia.
Tinha iniciado esta crónica, convicta de que um Novo Ano é sempre um momento de Renovação, dedicando-me a relembrar algumas das divindades cultuadas em Roma, nesta altura do ano, associando-se ao Solstício de Inverno, e à ideia de Recomeço, bem como a essas figuras míticas dos Reis Magos que brevemente comemoraremos, que, em termos genéricos, representam a Viagem no sentido da Luz, passado o tempo de maior escuridão.
Mas os massacres hediondos a que quase nos vimos habituando, muitos feitos em nome da Crença e da Fé, toldam-me, muitas vezes, os pensamentos, fazendo-me duvidar dos símbolos que o Tempo me ensinou e o Presente torna-me apreensiva, por vezes, quase descrente.
Mas ainda assim, não posso deixar de passar esta quadra sem lembrar todas as divindades e entidades que, desde tempos imemoriais, lembram a ligação do Homem à Natureza e à Divindade.
Recordo que, em Roma, a partir de 17 de dezembro, se iniciava o Festival «Saturnália», cuja duração foi variando ao longo das diferentes dinastias ou imperadores, chegando a durar sete dias.
A Saturnália reunia as comemorações do fim do ano agrícola e religioso, a que se associava a ideia do fim de um ano “velho” e início de outro novo.
E lembro também Jano, designado Ianus, deus dos começos e das transições, assim como das portas e das entradas; das passagens e do tempo.
Divindade suprema do panteão romano, é representado com duas faces – uma velha e outra jovem – olhando simultaneamente para o Passado e para o Futuro. A uma corresponde um cajado na mão e, a outra, uma chave, a que abre o devir e o próprio Olimpo. Jano simboliza o ritmo e a harmonia cósmica. O mito narra-nos que Cronos, o Saturno dos Romanos, o titã do TEMPO e pai de Zeus, se refugiou no reino de Jano e, em recompensa, deu-lhe a capacidade de observar o Passado, para decidir sabiamente. Para os gregos, já Cronos representava a perpétua e cíclica renovação da vida, tudo o que há entre o início e o fim.
Em honra de Jano foi dedicado o mês com que se inicia o ano, Ianuarius.
Sendo uma divindade bi-facetada, Jano Bifrontes é a figura tutelar do próprio Tempo, e tanto a encontramos referenciada nas épocas de plantio como nas de colheita, em muitas cerimónias religiosas ao longo do ano. Mas ainda nos momentos que marcam a vida, tal como os nascimentos ou casamentos e mesmo nos óbitos. Jano sendo o deus dos inícios e recomeços, é-o também das decisões e das escolhas, trazendo riqueza.
Por vezes, Jano surge representado com quatro faces, Jano Quadrifontes, associando-se às estações do ano.
Por vezes, Jano surge representado com quatro faces, Jano Quadrifontes, associando-se às estações do ano.
Assim se nos refere Cícero:
“Uma vez que, além disso, em todas as coisas no princípio e o fim são da maior importância, atribui-se o primeiro lugar no sacrifício a Ianus”
“Uma vez que, além disso, em todas as coisas no princípio e o fim são da maior importância, atribui-se o primeiro lugar no sacrifício a Ianus”
Segundo Ovídio, Jano tem um duplo rosto porque exerce o seu poder tanto no céu, no mar, como na terra; e é tão antigo como o mundo; tudo se abre ou se fecha à sua vontade. Sozinho governa a vasta extensão do universo e observa ao mesmo tempo o Oriente e o Ocidente: “Presido sobre as portas do céu, junto com as suaves Horas: o próprio Júpiter vai e volta graças a mim”. o[Fasti I 125-126].
Mas Jano rege também o início e o fim de conflitos, e a guerra e a paz, mantendo-se as portas do seu templo abertas em tempo de guerra e são fechadas para assinalar a paz.
Surge associado a Portuno, deus das chaves e dos portos, e relaciona-se com as viagens, o comércio e o transporte e, por isso, é representado com uma chave numa das mãos, e, na outra, uma vara ou cajado, simbolizando que é o guardião das portas (januae) e que preside os caminhos.
Surge associado a Portuno, deus das chaves e dos portos, e relaciona-se com as viagens, o comércio e o transporte e, por isso, é representado com uma chave numa das mãos, e, na outra, uma vara ou cajado, simbolizando que é o guardião das portas (januae) e que preside os caminhos.
Não poderemos no espaço desta crónica tratar todas as divindades que, em Roma, se associam à ideia do Solstício de Inverno e ao dia de Natal, a exemplo do Sol Invictus e de Mitra, a quem se atribuía o nascimento a 25 de Dezembro, tanto mais que a eles já dedicámos crónicas anteriores. Mitra seria essa divindade de origem persa, nascida de uma rocha, mas que honra a Luz e o Céu, para onde ascenderá.
A partir desta data os dias prolongam-se e as religiões antigas atribuíam o fenómeno ao triunfo do Sol sobre as trevas, sendo comum, em muitas delas que, por essa altura se fizessem fogueiras, a exemplo do que ainda nos nossos dias se faz com os madeiros.
Também ao 25 de Dezembro atribuíram os Cristãos o nascimento de Jesus, dando-lhe o mesmo carácter simbólico do renascer da Luz.
E acabaram por transformar o deus bifronte romano em S. João, o Evangelista e o Baptista, as duas portas do Céu, celebrando as suas efemérides a 27 de Dezembro e 24 de Junho.
Mas recordaremos ainda os Reis Magos que, seguindo o caminho indicado por uma «estrela» vão no encalço do Deus Menino, essa nova divindade a que, gradualmente Roma se irá render. Vão ofertar-lhe o que de melhor para os Homens existia: a sua dádiva.
Esses Reis Magos que espelhavam a interculturalidade, um mundo feito de raças, e que, na Cristandade, acabou por representar a ideia dos poderosos que são capazes de se vergar perante um Menino de nascimento humilde.
Crê-se efectivamente que não seriam reis, mas sacerdotes ou mesmo astrónomos ou astrólogos, pois quer para gregos, quer romanos o termo designava o mesmo.
Mago é também o que detém Sabedoria e Filosofia.É a designação que, entre os Orientais e mesmo já no Mundo Romano, se dá à classe dos sábios ou eruditos, embora a palavra também fosse usada para designar os astrólogos. Mas também assim são designados os sacerdotes ou mágicos, os adivinhos, os feiticeiros, os que fazem presságios. Por sua vez, saga é mulher sábia, a dos conhecimentos mágicos.
Aliás, a popularidade e a aceitação da astrologia entre romanos não pode exprimir-se de forma mais clara do que a adopção dos nomes dos planetas para designar os dias da semana, sendo os planetas como que os “governadores do tempo”.
Assim, os Magos seriam provavelmente três ou mais, pois até quanto ao número há dúvidas, personagens sábios-astrólogos, membros da classe sacerdotal de alguns povos orientais, como os caldeus, os persas ou medos e só muito posteriormente a Igreja lhes atribuiu a designação “Reis”, em virtude da interpretação do Salmo 71,10.
Pouco se sabe sobre as suas origens, mas vinham do Oriente e Baltazar, o mago negro, era provavelmente oriundo de Sabá, um local mítico que se supõe ser na Península Arábica, mas que os etíopes pretendem identificar com a Abissínia.
Representavam as três raças bíblicas já referidas no Génesis, isto é, os semitas (sem nome) e que parece terem povoado a Ásia, sendo progenitores dos iranianos, assírios, turcos; os jafetitas, descendentes de Jafé; e os camitas, de onde se pensa serem oriundos os povos da Ásia Oriental e da África, como os egípcios, líbios e etíopes, tratando-se, portanto, a sua viagem guiada por uma estrela de homenagem de todos os Homens da Terra ao “Rei dos Reis”, mesmo que o seu “Reino não fosse deste Mundo”, de acordo, aliás, com os Salmos 72:11 «Os reis de toda a terra hão de adorá-Lo».
Costuma associar-se aos seus nomes a diferentes características: Gaspar, o mais novo, é o portador de incenso como reconhecimento da Divindade, é «Aquele que vai inspecionar»; Melchior ou Belchior era velho e o que porta o ouro em reconhecimento da Realeza do Menino Jesus, significa «Meu Rei é Luz»; e Baltazar, com 40 anos, é o que oferece a mirra em reconhecimento da Humanidade.
Lembro ainda, por exemplo, que a especiaria que Baltazar oferece ao Menino, a mirra, feita de uma erva resinosa, era usada já pelos Egípcios no processo de mumificação e os Romanos utilizaram-no como perfume, designadamente nos seus rituais fúnebres.
Além disso são conhecidas desde a Antiguidade as qualidades terapêuticas e medicinais da Mirra, sendo recomendada por Dioscórides que foi médico das legiões romanas na Palestina, no século I, para situações febris e para dores de costas, desinterias e outros problemas intestinais.
Para Mirra encontrou a Mitologia Greco-romana uma divindade com o mesmo nome. Mirra, filha de Cíniras, rei de Panchaia, uma terra ao leste da Arábia (segundo a versão do escritor Ovídio, na sua obra Metamorfoses), e sacerdote da deusa Afrodite, foi mãe de Adónis, tendo sido transformada no arbusto com o mesmo nome por ter amado o próprio pai.
Pois é esta a mesma Mirra, a usada nos rituais funerários ancestrais, que confere ao Menino uma dimensão humana.
«O próprio Cupido nega que as suas setas te tenham ferido,
ó Mirra, e iliba os seus archotes de uma tal acusação (...)
De toda a parte a nata dos princípes te deseja; do Oriente inteiro acorrem jovens a disputar o teu leito nupcial. Escolhe um deles, Mirra,
de entre todos, desde que certo homem não esteja entre eles!».
ó Mirra, e iliba os seus archotes de uma tal acusação (...)
De toda a parte a nata dos princípes te deseja; do Oriente inteiro acorrem jovens a disputar o teu leito nupcial. Escolhe um deles, Mirra,
de entre todos, desde que certo homem não esteja entre eles!».
Ovídio, Metamorfoses, Livro X.
Não consigo, portanto, imaginar um mundo dominado em que à interculturalidade seja substituída pelos divórcios extremistas, pelo Medo, pela xenofobia ou pelos fanatismos que conduzem à Intolerância ou a discursos políticos contra a multiculturalidade como alguns a que assistimos.
Por isso, em homenagem aos que morreram ao longo da História, vítimas de perseguições religiosas, fica hoje a minha apreensão, mas a consciência clara de que defenderei ainda mais a Liberdade de pensamento e de coexistência na diferença, independentemente do sítio onde possa estar ou do tema que possa abordar.
Porque não posso imaginar que qualquer divindade me exija que não seja livre ou que mate em nome de uma "Fé".
Bom 2018
Filomena Barata: Técnica Superior do Museu Nacional de Arqueologia. Colaboradora da Revista Incomunidade