Sabia que uma cidade romana ...
A cidade é um dos alicerces de um Império, que assenta, por um lado, na «normalização» que tenta imprimir às mais longínquas fundações, mas que se sustenta, por outro lado, à custa da diversidade local e da maximização das potencialidades regionais, faz-nos dimensionar a complexidade de questões que se levantam ao estudo da organização urbana em época de dominação romana (1).
A própria Romanização não consistiu num processo de aculturação único ou unidireccional, mas numa trama complexa de interacções entre grupos de agentes muito variados. Todo este complexo processo de interacções, a variedade e diversidade infindável de situações e as estruturas urbanas pré-existentes com que os Romanos se deparam na Hispânia fez «flutuar», numa primeira fase, os estatutos administrativos dos aglomerados urbanos, a definição dos seus «territórios», das ciuitates, a unidade territorial de dimensão variável, organizada em torno de um lugar-chave urbanizado, a cidade, segundo conceito utilizado por Le Roux, tratando-se, em primeiro lugar, de uma divisão territorial dotada de relativa autonomia e correspondente, nos limites do possível, a uma unidade étnica, segundo Pierre Gross e Torelli, tese esta questionável pois é sabido que uma mesma etnia pode ter muitas ciuitas, entendidas como um núcleo urbano e seu correspondente território.
Digamos, que o conceito engloba, portanto, o aglomerado urbano e o território sobre o qual exerce autoridade administrativa e o próprio conceito de cidadania.
A noção de urbanidade, de que já os Romanos fizeram um dos pilares «civilizadores», contempla não só o fenómeno citadino propriamente dito, mas também a ideia de centros polarizadores de unidades territoriais, administrativas, económicas e produtivas que geram e partilham da dinâmica da cidade e das permutas feitas entre esta e outros «lugares centrais».
À volta de um aglomerado central do ponto de vista político e económico, desenvolvem-se no território pertencente à ciuitas um conjunto de actividades económicas de características fundamentalmente rústicas, pois nelas assenta maioritariamente a estrutura do Império que, gradualmente se vai tornando mais comercial.
A relação entre estes «centros» e as suas «capitais» e entre eles e os seus «territórios» fornecedores dos produtos indispensáveis para a manutenção dos aglomerados urbanos não é, por seu lado, estanque ou fixa no tempo, dependendo das relações de dominação militar e política que se estabelecem entre vencidos e vencedores, ou da permeabilidade que se consegue com as pré-existências culturais e económicas.
Não obstante, a cidade foi, como continua a ser, o local onde se organizam modelos, onde se apreende o sistema de símbolos comuns que participam de uma determinada cultura dominante, pese a capacidade de nela serem ou não integrados, ou miscigenados, valores de outras que lhe são «alheios».
A urbs foi, embora se tenha que atender ao amplo processo de adaptação entre conquistadores e conquistados, o veículo e o suporte da ordem romana dominante e do império: «um poder ecuménico cimentado em cidades e estas num corpo social hierarquizado, em cujo seio a elite perpetuava a ordem tradicional. .... Se para os gregos ... não existia fora da polis espaço para a liberdade, também o sentido romano de libertas era impossível fora de uma colónia ou um município. A romanização jurídica substituía, portanto, no plano ideal o “homem bárbaro” pelo “cidadão”», utilizando as palavras de Abascal e Espinosa, e, 1989: 45, como se poderá confirmar na bibliografia específica deste tema.
A criação de núcleos urbanos foi, pois, um dos veículos usados para a penetração e difusão da Romanidade, favorecida pelas elites locais, que procuravam a todo o custo manter a sua situação privilegiada, garantida ou mesmo beneficiada à medida que a municipalização desses núcleos se vai alargando. Fot. 1.
É, pois, nesta relação territorial que se afirma o poder da urbs; e é nessa articulação que se enforma o conceito de ciuitas.
De uma cidade, podemos, em traços largos, dizer que se conforma dos seus edifícios públicos que no Forum, o centro cívico da cidade, têm a sua maior concentração, pois é aí que se localizam os espaços administrativos e lugares de decisão, os templos, as basílicas judiciais e em redor do qual, ou nas proximidades, se localiza geralmente uma zona comercial com o seu macellum. Obviamente, e tal como anteriormente referimos, também a estruturação do Forum se altera ao longo do tempo, salientando-se, que o período imperial assiste a um ensimesmamento do mesmo que se passa a fechar mais, pois os templos dedicados ao culto imperial também exigem essa centralidade.
Mais do que em qualquer outro lugar do Império, no Ocidente, onde a arquitectura urbana se afirma tardiamente, o forum «representa o local no qual se concentram todos os símbolos da dignidade municipal, os edifícios administrativos e religiosos que definem a paisagem urbana e no qual as gerações que se sucedem, qualquer que seja o estatuto da cidade, adquirem a consciência de pertencer a uma comunidade». Os seus monumentos são a «verdadeira memória da cidade ... da sua autonomia, e das suas relações com o poder central» , utilizando as palavras de Pierre Gros.
Em termos gerais, o modelo básico de fora construídos na Hispânia, em período imperial, é caracterizado pela combinação de três elementos fundamentais: templo, praça e basílica e ainda a Cúria, edifício destinado a sede oficial do Senado do Município ou da cidade que, gradualmente, vai perdendo a sua importância.
Mas a cidade é também feita da sua estrutura viária que a organiza, quer os espaços privados e domésticos, os seus bairros ou insulae, os quarteirões de prédios que podem ter vários pisos; das suas habitações ou domus, as casas abastadas; dos seus edifícios termais ou dos balneários, garante da higiene e saúde públicas; dos seus templos ou mercados; das suas estruturas hidráulicas, garantindo o fornecimento e escoamento de águas; dos seus aquedutos, poços e cisternas; das suas actividades artesanais ou industriais, das suas olarias, instalações metalúrgicas, geralmente periféricas, ou piscatórias; das suas zonas comerciais, e ainda dos lugares de espectáculo através dos quais Roma se impõe também nos seus mais longínquos territórios, fossem eles os teatros, anfiteatros ou circos.
Dotadas ou não de muralhas ou portas, de plantas hipodâmicas que denunciam fundações de raiz ou precedidas de acampamentos romanos, ou de malhas urbanas menos recticuladas, adaptando-se a topografias ou a fundações de épocas anteriores que inviabilizam o modelo ideal ortogonal, as cidades são, sem dúvida os grandes alicerces do Império Romano e o símbolo de um sistema organizativo religioso, social e político. Falar de Cidade, é pois, falar de uma vida intensa que, em Roma, a capital, fez concentrar tanta gente e tantas actividades que fez surgir a necessidade de criar corpos de bombeiros e legislação adequada ao tráfego de veículos de transporte de mercadorias e que, em escala maior ou menor, as capitais do império quiseram mimetizar.
No que respeita ao Ocidente da Península Ibérica, Roma elege três cidades onde centraliza a estruturação da sua nova realidade político Administrativa: Pax Iulia (Beja), uma colónia de cidadãos romanos; Liberalitas Iulia Ebora (Évora), uma cidade de direito latino, e Felicitas Iulia Olisipo (Lisboa), com estatuto de município, todas com o epítetos que evocavam César e as virtudes “júlias”, utilizando as palavras de Carlos Fabião (2006) - ver bibliografia disponível no link abaixo mencionado.
Mas a criação da Lusitânia, provalvelmente em 16 ou 15 a.C. com a capital em Augusta Emerita (actual Mérida), fundada como colonia em 25 a.C. e a divisão em novas circunscrições administrativas, os conventus, vem originar a criação de novas capitais: Augusta Emerita; Pax Iulia e Scallabis (Santarém), as três com estatuto colonial, que, por sua vez, vem originar a proliferação de núcleos urbanos de menor escala que estruturaram o território.
Mas sobre essa temática das cidades da Lusitãnia, deixaremos a quem tanto ao tema se tem dedicado …
Para a Bibliografia específica sobre cidades, ver:http://www.portugalromano.com/2011/01/mirobriga-e-as-cidades-romanas-bibliografia-por-filomena-barata/
(1) Este artigo baseia-se parcialmente na introdução da tese de mestrado da signatária, disponível em:http://independent.academia.edu/FilomenaBarata/Papers/833828/Mirobriga_Arquitectura_e_Urbanismo
Arco romano de Pax Iulia (Beja).