Este texto foi elaborado e actualizado a partir do texto com o mesmo nome publicado em «Algarve, Noventa Séculos entre a Serra e o Mar», Filomena Barata.
O Promontorium Sacrum e São Vicente
Cit. in M.F.B. “O Promontório Sacrum e o Algarve entre os Escritores da Antiguidade”, Algarve:Noventa Séculos entre a Serra e o Mar. IPPAR.
Na descrição de Avieno, na sua Ora Marítima, diz-se do Cabo de S. Vicente que
“Então, lá onde declina a luz sideral, emerge altaneiro o Cabo Cinético, ponto extremo da rica Europa, e entra pelas águas salgadas do Oceano povoado de monstros”, sabendo-se que foi dedicado um templo a Saturno no Promontorium Sacrum.
(Nos seis painéis do Retábulo de São Vicente, atribuído a Nuno Gonçalves, pintor do rei D. Afonso V, revela-se um dos mais notáveis retratos colectivos da pintura europeia. Sendo este políptico fonte inesgotável de leituras e interpretações, um segmento considerável da recente historiografia concorda no facto da representação se centrar na Veneração a São Vicente no contexto das campanhas da Dinastia de Avis contra os mouros, em Marrocos. – Segundo Museu Nacional de Arte Antiga)
Cit. in M.F.B. “O Promontório Sacrum e o Algarve entre os Escritores da Antiguidade”, Algarve:Noventa Séculos entre a Serra e o Mar. IPPAR.
Refira-se que este texto foi elaborado a partir de artigo com o mesmo nome, publicado na obra que tive o gosto de coordenar, acima mencionada, se bem que numa versão mais sintética com algumas alterações. Contudo, na parte final, citá-lo-ei na íntegra, caso não seja fácil o acesso ao livro.
«No Cabo de S. Vicente não há propriamente um
monumento. Há um monte artificial de cascalho, – pedras miúdas –, chamado muledre
(i.e. moledo); diz o povo que aquelas pedras são soldados encantados de D. Sebastião, e
que quem levar uma para casa e a puser à noite no travesseiro, verá de manhã aparecer-
-lhe um soldado, que logo desaparece. Aqui parece haver um eco longínquo da passagem
estraboniana, que aliás está corrupta, e por isso se não percebe toda. § No cabo há muitas
aparições: figuras a andar pela praia, luzes à noite. Ouve-se uma música longínqua,
sumida… e depois as luzes começam a voltijar [sic]. Aqui é que temos sem dúvida a
lenda contada por Estrabão».
José Leite de Vasconcelos, 1894
cit. in: José Leite de Vasconcelos (1858 – 1941): um archeólogo português
CARLOS FABIÃO, in O Arqueólogo Português, Série IV, 26, 2008, p. 97-126
José Leite de Vasconcelos, 1894
cit. in: José Leite de Vasconcelos (1858 – 1941): um archeólogo português
CARLOS FABIÃO, in O Arqueólogo Português, Série IV, 26, 2008, p. 97-126
http://www.uniarq.net/uploads/4/7/1/5/4715235/fabiao_2008b.pdf
«A Noite deu à luz o destino assustador e o negro Fim.
e a Morte, e deu também o Sono, e ainda toda a raça dos Sonhos.
Depois deu à luz o sarcasmo e o Lamento doloroso,
a Noite tenebrosa, sem se ter unido a nenhum dos deuses,
e as Hespérides, que, para lá do Oceano ilustre, guardam maças de ouro,
e a Morte, e deu também o Sono, e ainda toda a raça dos Sonhos.
Depois deu à luz o sarcasmo e o Lamento doloroso,
a Noite tenebrosa, sem se ter unido a nenhum dos deuses,
e as Hespérides, que, para lá do Oceano ilustre, guardam maças de ouro,
belas, e as macieiras de onde elas nascem.»
Hesíodo, Teogonia, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2014
Estrabão, no século I a. C., e Avieno, no século IV d.C., descrevem-nos pormenorizadamente a área compreendida entre o Estreito de Gibraltar e o Cabo de S. Vicente, esse lugar mágico onde o corpo do Santo que lhe conferiu o nome deu à costa, fazendo uma viagem mítica de Oriente, de Valência, para Ocidente.
Na descrição de Avieno, na sua Ora Marítima, diz-se do Cabo de S. Vicente que
“Então, lá onde declina a luz sideral, emerge altaneiro o Cabo Cinético, ponto extremo da rica Europa, e entra pelas águas salgadas do Oceano povoado de monstros”, sabendo-se que foi dedicado um templo a Saturno no Promontorium Sacrum.
O lugar que, em período pré-romano, já era sacralizado, devendo ter-se tornado santuário dedicado ao deus de origem púnica Baal Hammon, associado por fenómeno de sincretismo religioso ao Saturno dos Latinos, é referido por Estrabão como um local onde“não é permitido oferecer sacrifícios nem aí pernoitar. Os que o vão visitar pernoitam numa aldeia próxima, e depois, de dia, entram ali levando água, já que o local não o tem”.
Aí, desde a Pré-História, se poderão ter desenrolado rituais religiosos que Estrabão descreve da seguinte forma: (há) ” pedras organizadas em grupos de três ou quatro, as quais, segundo um antigo costume, são viradas ao contrário pelos que visitam o local e depois de oferecida uma libação são recolocadas na sua posição anterior”.
A impressão que o local deve ter causado é de tal forma que se dizia entre alguns autores da Antiguidade, como Posidónio, que o Sol aqui aumentava com o Ocaso, pondo-se com ruído, como que a extinguir-se entre as águas do Oceano.
Também Plínio (4, 115) se refere ao Promontorium Sacrum da seguinte forma:
« o Tejo é famoso pelas suas areias auríferas. Distando dele cento e sessenta milhas, ergue-se o promontório Sacro, aproximadamente a meio da parte frontal da Hispânia».
O PROMONTORIUM SACRUM
E O ALGARVE ENTRE OS ESCRITORES DA ANTIGUIDADE
FILOMENA BARATA
Estranha-se
a pedra porque está ali onde a olhamos e ela vê-nos à sua maneira com
indiferença máxima pelo nosso andar. Andamos-lhe em volta não a ignoramos nem a
conhecemos nem a domesticamos só podemos admirá-la. Virá-la para dentro. Para o
tempo. Que ela mostra. É um relógio de um ponteiro que marca séculos se os
contarmos e tudo o que neles acontece. Um soldado morto vive numa pedra e só
nasce debaixo do travesseiro. É um sonho de pedra pequena e muita guerra vista
em volta. Com muito tempo. Ninguém as retirava do seu moledro lá por Sagres.
Impressões da Lusitânia, Álvaro Lapa
(A Phala nº39, 1994)
Várias são as
referências de autores Gregos e Romanos ao território actualmente algarvio,
sendo a descrição do geógrafo grego Estrabão (século I a.C.) uma das mais
pormenorizadas no que diz respeito à área compreendida entre o Estreito de
Gibraltar e o Cabo de S. Vicente.
No entanto a Ora Maritima, de Avieno, escrita no
século IV d.C., mas que se baseia fundamentalmente num périplo comercial
massaliota do século VI a.C., se bem que com posteriores acrescentos
fundamentados em informações gregas e latinas, continua a ser o texto mais
antigo que se conhece descrevendo o Ocidente da Ecúmena e, consequentemente, a
costa do Sudoeste e Sul peninsular. Apesar de continuar a levantar questões de
vária índole, que se prendem com aspectos geográficos, etnológicos, gentílicos,
e outros, ela é ainda uma fonte importante de informações sobre esta zona.
Como metodologia para a
abordagem dos textos clássicos, e dada a quantidade de dados que contêm,
optámos por focalizar os aspectos religiosos que o texto citado por Avieno
coloca e, a partir dele, iniciar o levantamento dos autores latinos que se
referem ao território actualmente algarvio.
1.
O Promontorium Sacrum
Ao descrever as
povoações contíguas às dos Cempsos, Avieno refere-as como tratando-se das dos
Cinetes (Avieno, v. 201) e
introduz o litoral algarvio referindo o Cabo Cinético (Cabo de S. Vicente): «Então, lá onde declina a luz sideral, emerge
altaneiro o cabo Cinético, ponto extremo da rica Europa, e entra pelas águas
salgadas do Oceano povoado de monstros» (vv. 201-205). E mais adiante,
expressa Avieno «Segue-se um promontório,
que assusta pelos seus rochedos, também ele consagrado a Saturno. Ferve o mar
encrespado e o litoral rochoso prolonga-se extensamente» (vv. 215-217).
Este segundo cabo é o que Avieno considera o «Sacro».
Nos versos que
anteriormente citámos, Avieno diz que o promontório é também ele dedicado a
Saturno. Este «também» poderá
remeter-nos para um passo anterior do seu texto, onde descreve «uma ilha abundante em ervas e consagrada a
Saturno. Nela a força da natureza é tanta que, se alguém navegando se aproxima
dela, de imediato em volta o mar se excita: a própria ilha se agita e a água
revolta-se toda, em fortes ondas, enquanto o resto do pego permanece silencioso
como se fora um lago» (Avieno, vv. 165-172).
A tendência, entre os
Antigos, de atribuir sacralidade a lugares distantes ou pouco conhecidos (Caro
Baroja, 1981, 18) pode justificar a conotação religiosa destes locais.
Às Terríveis Górgonas
foi dada como habitação o Oceano ocidental, a região da «meia-luz», onde se situava a Ibéria (Caro Baroja, 1981, 18) e o «luminoso Ocidente » (Ésquilo, ed. s/d,
61). Mela e Plínio apontavam para a morada das mesmas as ilhas Górgades — Insulae Gorgades (Pompónio Mela, III 9,
89-96, 99; Plínio VI, 200), situadas em frente ao promontório chamado «Hesperu Ceras, a partir do qual a terra
firme começa a dobrar-se até ao ocaso e até ao Mare Atlanticum» (Plínio VI,
200).
Tal como os Titãs,
Prometeu, desterrado num pico rochoso do Cáucaso ou da remota Cítia, vivia no «extremo ponto da terra» (Plínio, 17),
tendo a seus pés o mar. Atlante, por sua vez, carregava a terra no «extremo ocidental do mundo» e Crono foi
também exilado, após a vitória de Zeus, nas terras distantes do Ocidente.
Balboa Salgado admite
que, na Ora Maritima, o Ocidente para
lá das Colunas de Hércules é identificado com o mundo lunar, infernal e da
morte, como que a entrada num mundo fantástico e mítico, onde Saturno impera. O
Ocidente é o «Mundo das Trevas», da barbárie, povoado de monstros, onde se
misturam o «Homem e a Besta» e onde a natureza é inóspita (Balboa Salgado,
1992, 379-381).
Há alguns autores que
querem ver no culto associado aos corvos, manifesta na existência de una
"Igreja do Corvo" no Cabo de S. Vicente, descrita por Idrisi, mais
tarde uma remota relação com o seus celta Lug, também ele paralelamente senhor
das trevas e da luz (Fernandes, 1993)
Em Avieno, encontramos
várias outras referências a cabos e promontórios sacros, nomeadamente quando se
refere a Herma, ou «via de Hércules»,
que possivelmente se deveria tratar do Cabo Trafalgar: «Depois para ocidente o cabo Sacro ergue os soberbos rochedos»
(Avieno, vv. 321-22).
Os promontórios e as
montanhas são na Antiguidade, lugares comummente sujeitos a sacralização, pelas
suas características imutáveis — são «cenários fixos» da paisagem —, pelo seu
aspecto grandioso e imponente que sugere a eternidade, que transcende a vida
humana (Eliade, 1992, 277). Constituem pois por essa permanência marcos
sacralizados da paisagem, moradas ou tronos
dos deuses (Hanão, ed. 1994, 107; Blázquez, 1993, 90). E, por sua vez,
muitos dos monstros a eles associados são os guardiões dessa sacralidade e
imortalidade — do desconhecido afinal — onde um iniciado está proibido de
penetrar (Eliade, 1992, 472).
Alguns autores defendem
mesmo que os povos do comércio marítimo poderiam ter usado a crença nesses
monstros como um estratagema que tinha em vista assustar possíveis
concorrências no domínio marítimo.
Curiosamente, esse tipo
de referências literárias a monstros é retomado no humanista Camões, quando
retrata o Adamastor e as façanhas dos heróicos marinheiros portugueses na
passagem do cabo das Tormentas (Camões, Os
Lusíadas, V, L, LI)
Não é pois de estranhar
que Avieno atribua ao culto de Saturno o «Cabo Cinético».
A Saturno dos romanos
têm alguns autores querido fazer uma correspondência directa ao Crono dos
Gregos, o que aliás não é totalmente correcto, se bem que exista uma clara
transposição de muitas das características do deus Baal púnico para o Crono
grego e Saturno latino.
E, muito possivelmente,
pela clara conotação com as «viagens míticas», atribuídas quer a Saturno quer a
Hércules, se associou o Promontório Sacro ao culto destes deuses. Saturno,
detentor do Tempo e da perdida «Idade de Ouro», quando os homens estavam unidos
aos deuses, tem ainda como atributo o remo e navegação. Plínio, o Antigo, situa
um promontório dedicado a Saturno em Cartago Nova (III 4, 18-30), fundação
cartaginesa marcadamente comercial que foi romanizada. Por sua vez, um périplo
escrito possivelmente no século V a.C. inicia-se com a viagem de Hanão para
além das «Colunas de Hércules», onde este rei será consagrado no templo de
«Crono», em direcção ao «sol poente». Este deus (Crono) corresponde, aqui,
muito provavelmente, ao deus púnico Baal Hammon, o Saturno dos romanos. Estas
transposições dos deuses púnicos para a mitologia grega e latina poderão
justificar ainda a sagração de muitos cabos a Poseídon, irmão de Zeus, que
substitui, de certo modo, o deus Baal Ras cartaginês.
Hércules, herói
civilizador por excelência, teria, segundo o mito, vencido simbolicamente,
impondo-se a Cronos/Saturno (Balboa Salgado, 1992, 388) e lutado com Atlas na
sua expedição ao jardim das Hespérides, situadas nos extremos ocidentais do
mundo conhecido. Deste facto provêm muitas das designações geográficas do Norte
de África na Antiguidade e algumas das quais continuadas até aos nossos dias:
«Colunas de Hércules», Atlas e o próprio Oceano Atlântico (García y Bellido,
1947, 46). Pompónio Mela relata mesmo a abertura do Estreito de Gibraltar por
Hércules (Mela, I, 27). Aliás, muitos historiógrafos islâmicos, medievais e
modernos têm atribuído à viagem de Hércules a fundação de muitas cidades e
monumentos na Hispânia, e ao seu descendente Hispan o seu primeiro reino
(Estévez Sola, 1990, 139-152; Estévez Sola, 1993, 207-217). Em Portugal, essa
visão mitológica e exaltante tem em Frei Bernardo de Brito, na Monarquia Lusitana , o seu expoente.
Para alguns desses
historiógrafos Cádis era mesmo o ponto mais ocidental do mundo conhecido, ponto
de união de duas grandes rotas, europeia e africana, onde Hércules deixara as
suas marcas (Ordónez Agulla, 1993, 251). Por sua vez, Dante, em O Inferno, faz Ulisses conduzir o seu
barco entre as Colunas de Hércules, «para
um mundo sem homens, do outro lado do sol».
A seu modo, S. Vicente
fará, segundo a lenda, a mesma «viagem mítica» de Oriente para Ocidente, até ao
limite do mundo conhecido (Dias, 1990, 29), quando das invasões dos Sarracenos
o seu corpo é deslocado de Valência para o «Cabo de S. Vicente do Corvo», onde
se depositaram os restos mortais do mártir do século IV d.C (Nascimento, 1990,
28). A partir desse momento, o Promontorium
Sacrum passou a atrair peregrinos cristãos, islâmicos e moçárabes. Do culto
praticado paralelamente por cristãos e muçulmanos no local há testemunho, tendo
o do geógrafo muçulmano Edrisi particular importância pelos pormenores da
descrição.
O Promontório Sacro, e
independentemente da sua localização exacta, deveria tratar-se, em período
pré-romano e romano, de um santuário ao ar livre dedicado ao deus púnico Baal
Hammon, associado por um fenómeno de sincretismo ao Saturno dos latinos
(Schulten e Blázquez), pois Estrabão nega a existência de qualquer templo
dedicado a Hércules ou a qualquer outro deus no local.
Admite-se pois
tratar-se de um local sagrado e de sacrifício como os consagrados a Baal
Hammon— tophet —. É também clara a
influência semita no culto praticado no Cabo Sagrado, onde não se podia
pernoitar (Estr. III, 1, 4), situação que apresenta algum paralelismo com a
descrita por Avieno quando se refere ao templo de Melkart (Salinas de Frias,
1988, 138). Em todo o Antigo Testamento são constantes as referências a
santuários ao ar livre localizados em pontos altos, e é no cimo de uma montanha
que Elias combate os profetas de Baal.
O Hieron Akroterion seria, muito possivelmente, dedicado a Melkart, o
«Hércules tírio» — o «Hercules Aegyptius»
de Mela (Mela III, 46) — culto que, implantado por Fenícios e cartagineses,
tinha grande influência em toda a área do Estreito e do Golfo Gaditano, como o
comprova a existência do santuário de Heracleion
(Salinas de Frias, 1988, 139; Rodríguez Ferrer, 1988, 101-110; Chaves Tristán e
Garcia Vargas, 1994, 376).
A negação de Estrabão
dever-se-ia apenas ao facto de o geógrafo grego não reconhecer os rituais de
culto aí praticado. No entanto, o mesmo já não se passa em relação ao santuário
de Cádis (Estr. III, 5, 5), o «Herákleion»,
a que dedica grande atenção.
O culto a
Melkart/Hércules, que teve grande importância no desenvolvimento da
religiosidade do Sul da Península Ibérica, assumira particular relevo em
Cartago, a partir do momento em que Amílcar Barca, assimilando o conceito de
monarquia helenística, adopta Melkart/Hércules como divindade dinástica
(Rodríguez Ferrer, 1988, 101, 105)
O Cabo de S. Vicente
poderia ter sido, deste modo, consagrado ao deus do panteão cartaginês
(Alarcão, 1990, 297) Baal Hammon/Saturno e, por influência do poderio de Gades,
a Melkart/Hércules, testemunhando a importância cultural fenício-púnica no
litoral algarvio (V. Mantas, texto deste catálogo).
Podemos, pois, concluir
que, quer se tratasse de um santuário dedicado a Baal Hammon/Saturno ou a
Melkart/Hércules, não deixa de ser evidente a identificação deste local com
entidades sagradas de clara conotação marítima. Leite de Vasconcellos admitira
como provável, e baseando-se nas informações de algum modo divergentes dos
autores clássicos, que poderia ter existido uma dualidade de santuários: um em
Sagres, consagrado a Saturno e outro, no Cabo de S. Vicente, dedicado a
Hércules (Vasconcellos, 1905, 214), hipótese que, pelo exposto, nos parece
pouco provável.
Se bem que não se
conhecendo vestígios arqueológicos de qualquer templo dedicado a Saturno ou de
quaisquer antigos santuários do Cabo de S. Vicente, hipótese que Estrabão,
segundo a interpretação de alguns autores, já havia acentuado quando cita
Artemidoro: «E diz que ali não há nenhum
templo de Hércules, como falsamente afirmou Éforo, nem qualquer altar a ele
dedicado ou a qualquer outro deus» (Estr. III, 1, 4) — parece, no entanto,
terem ali sido praticados, ao longo do tempo, rituais religiosos que se
poderiam ter desenvolvido desde o Neolítico (Gomes et alii, 1987, 23). A concentração de menires no concelho de Vila
do Bispo tem consentido interpretar a referência de Estrabão a «pedras organizadas em grupos de três ou
quatro, as quais, segundo um antigo costume, são viradas ao contrário pelos que
visitam o local e depois de oferecida uma libação são recolocadas na sua
posição anterior» (Estr. III, 1, 4) como alusões a monolitos com funções
cultuais (Gomes et alii, 1987, 18).
No entanto, a
existência de rituais ligados a pedras, acompanhados amiúde de oferendas ou
libações às mesmas, está atestada em muitos locais, nomeadamente em Tiro,
havendo mesmo referências bíblicas a este tipo de rituais, como no sonho de
Jacob:
«Verdadeiramente, Iawe|Deus está neste local e eu mesmo não o sabia [...]
De modo que Jacob se levantou de manhã
cedo e tomou a pedra que tivera ali como apoio para a sua cabeça, e erigiu-a
como coluna e despejou óleo sobre o topo dela [...] E esta pedra que ergui como coluna se tornará uma casa de Deus...»
(Genesis, 28, 12-22). Vários rituais ligados a pedras estão patentes em todo o
Antigo Testamento, herdando-os, de certo modo, o próprio Cristianismo; Jesus
diz a Pedro: «Tu és Pedro, e sobre esta
Pedra edificarei a Minha Igreja e as portas do inferno nada poderão contra ela»
(São Mateus, 16).
São inúmeras as
superstições ligadas a pedras ainda vivas no Cabo de S. Vicente no início do
século (Vasconcellos, 1905, 202-206), tal como, nos nossos dias, é ainda comum
a prática de rituais «fertilizadores» associados a antas ou a outras «pedras».
Se bem que podendo
admitir-se a estreita relação de práticas religiosas ligadas a pedras, como as
descritas por Estrabão, com alguns rituais praticados em cultos de origem
semita (Salinas de Frias, 1988, 137; Eliade, 1992, 539), não será descabido, no
entanto, questionar se eles terão tido uma difusão ainda anterior ao período
fenício-púnico.
O texto de Estrabão
assume ainda, para alguns autores, uma grande importância ao nível da história
das religiões antigas, porque tem sido conotado como uma das poucas notícias
sobre libações de água de que há conhecimento (Blázquez, 1981, 183):
«Não é permitido oferecer sacrifícios nem aí pernoitar [no
Promontório Sacro] pois dizem que os
deuses o ocupam àquelas horas. Os que o vão visitar pernoitam numa aldeia
próxima, e depois, de dia, entram ali levando água, já que o lugar não o tem»
(Estr. III, 1, 4).
Esta interpretação não
é, no entanto, isenta de dúvidas, uma vez que nada permite assegurar que a água
seja usada efectivamente para libações e não sirva apenas para beber.
Estrabão, baseando-se
em Posidónio — que desmente o fenómeno — diz que, segundo tradições populares,
neste local o Sol aumenta no Ocaso, pondo-se com ruído, como que a extinguir-se
entre as águas do Oceano (Estr. III, 1, 5). Estrabão tenta dar uma explicação
«científica» para este fenómeno.
Crenças idênticas, e
vigentes em período possivelmente contemporâneo, encontram-se noutros pontos da
costa ocidental da Ibéria (Sousa, 1990, 365), denunciando cultos astrais de
óbvia proveniência remota. «O fim do dia
seria rematado por uma agonia astral que se traduziria como um baptismo cósmico
semelhante ao que acontecia com Hélios no seu carro solar ao despenhar-se
ritualmente no mar» (Dias, 1990, 29).
A associação de S.
Vicente com os corvos mantém ainda uma forte conotação com a luz, aves que
possuem a capacidade de dar (ou retirar) a visão (luz/sabedoria).
2
- O Algarve entre os escritores da Antiguidade
Os romanos devem ter
chegado ao Algarve pelos finais do século III a.C. ou nos primeiros anos do
século II a.C. na sequência do tratado de 206 a.C. pelo qual Gadir (Cádis)
reconheceu a supremacia romana (Rodríguez Neila, 1980, 25-34).
Célticos e Túrdulos
ocupariam, à chegada dos romanos, o território do Sul actualmente português. No
entanto, fontes clássicas confirmam que este era habitado, antes das imigrações
Túrdulas e de Celtas, por volta da segunda metade do I milénio a.C., por uma
população não indo-europeia, possivelmente indígena, o dos Cónios ou Cinetes
(Alarcão, 1990, 357-8) .
Os Cónios, que segundo
Apiano se tornaram aliados dos Romanos, devem ter sofrido alguns ataques
pontuais dos Lusitanos, alguns dos quais poderão ter atingido o território
algarvio (Arruda e Gonçalves, 1993, 459). Esta região tornou-se, pois, palco de
escaramuças entre Romanos e Lusitanos no século II a.C. e novamente local de
confronto durante as guerras sertorianas. No entanto, só no século I a.C. se
deve ter iniciado uma romanização efectiva da área.
Baseando-se também
maioritariamente em autores anteriores, até porque Estrabão não conhecia
pessoalmente a Ibéria, este geógrafo do tempo de Augusto usa informações gregas
e latinas, tais como as de Éforo (século IV a.C.), Homero (século VIII a.C.),
de Políbio (século II a.C.), de Artemidoro (século II a.C.) e de Possidónio
(século I a.C.), entre outros.
Destinado
fundamentalmente aos soldados e aos governantes, mais do que aos estudiosos
(González Ponce, 1990, 83), os textos da Geografia
de Estrabão utilizam, em grande parte, dados desactualizados (Abascal e
Espinosa, 1989, 14). No entanto, algumas informações do texto de Estrabão são
mais actuais, pois o autor já conhece a divisão administrativa de 27 a.C., a
reorganização de Agripa de 19 a.C. ou 18 a.C. e a divisão de Augusto, feita
entre 7 a.C. e 2 a.C. A este último momento correspondem os dados mais recentes
de Estrabão, que equivalem ao definitivo ajuste da divisão provincial da
Hispânia (Pérez Vilatela, 1990, 100, 114).
Em termos gerais, o
autor deixa transparecer um relativo desconhecimento do território compreendido
entre o Hieron Akroterion e o Anas (Arruda e Gonçalves, 1993, 456).
O livro III da Geografia é o que mais exaustivamente se
prende à descrição da Hispânia, iniciando-se praticamente com a descrição do
Cabo Sacro. O geógrafo grego refere-o, tal com se verifica no texto citado por
Avieno, como o ponto mais ocidental da Ibéria: «Este é o ponto mais ocidental não só da Europa, mas também de toda a
oikouméne» (Estr. III, 1, 4).
O facto de Estrabão
reconhecer o promontório como o ponto mais ocidental da «oikouméne» contribuiu
para várias interpretações àcerca da localização exacta do Cabo Sacro, ao ponto
de Schulten considerar, a um dado momento, que se poderia tratar do Cabo da
Roca, esse efectivamente o ponto mais ocidental da Europa (Schulten, 1952, 23;
Mantas, 1990, 154). Contudo, o texto parece ser conclusivo quando situa o Cabo
entre os Cúneos, tal como o périplo massaliota citado por Avieno no século IV
d.C.
Da Turdetânia, região
que Estrabão refere indiscriminadamente, em passos diferentes da sua Geografia, como entidade geográfica —
cujos limites são indefinidos, mas que, em termos gerais compreende a
«mesopotâmia» formada entre o Tejo e o Guadiana, abrangendo, portanto, o
litoral algarvio, chegando mesmo a citar a cidade de Ossonoba; como unidade étnica — área de influência dos Turdetanos —
e como unidade política — correspondente à província da Bética — (Pérez
Vilatela, 1990, 101) Estrabão faz uma pormenorizada descrição:
«A Turdetânia é uma região extremamente próspera; e porque produz todas
as coisas e em grande quantidade esta prosperidade é duplicada pela exportação;
porque o que sobra dos produtos vende-se facilmente dado o grande número de
navios mercantes. Isto torna-se possível graças aos rios e também aos estuários
que, como já se disse, parecem rios e como rios são navegáveis, não só com
barcos pequenos, mas também com barcos grandes, desde o mar até às cidades do
interior, porque é plana em grande extensão toda a costa entre o Cabo Sagrado e
as Colunas» (Estr. III, 2, 4).
Através deste
trecho deduz-se o importante comércio marítimo e fluvial que se fazia na região
e para os pontos do interior. Estrabão clarifica-nos quanto aos produtos
originários da Turdetânia:
«Obtém-se da Turdetânia trigo, muito vinho e azeite não tanto, mas é de
excelente qualidade [...] é abundante
em carnes e peixes sazonados, não só aqui, mas no resto do litoral, depois das
Colunas, em nada inferiores aos do Ponto» (Estr. III, 2, 6).
«Abundam as indústrias de salga de peixe, que produzem salmouras tão
boas como as pínticas» (Est. III, 2, 6).
«A excelência das exportações da Turdetânia manifestam-se no grande
número e no grande tamanho das naves» (Estr. III, 2, 6). No entanto,
Estrabão elucida-nos que o comércio de maior porte é o de Cádis, onde os navios
são em maior número e tamanho (Estr. 5, 3), confirmando a reconhecida
importância deste porto que negoceia quer através do «Mare Nostrum» e do «Exterior».
Em relação à abundância
de metais Estrabão reafirma, por várias vezes, a excelência da Ibéria, tal como
o haviam feito Políbio, Possidónio (in Estr. III, 2, 9 e Diodoro, V, 35, 3) e o
farão Tito Lívio (Liv. XXVI, 47, 7, XXVIII, 38, 5 e outros) Pompónio Mela (Chorogr. II, 84-6, 85-97; III, 8),
Plínio (N.H. III, 4, 18-3; XXXIII,
61, 96, 106, 118 e outros) e Marcial (Epigr. I, 62), entre outros: «pois se toda a terra dos Iberos está cheia
deles, nem todas as regiões são igualmente férteis e ricas, e com mais razão as
que têm abundância de minerais, já que é raro que numa região se dêem ambas as
coisas ao mesmo tempo, e raro é também que numa pequena região exista toda a
espécie de metais. Mas na Turdetânia e nas regiões comarcãs abundam ambas as
coisas».
E Estrabão é
concludente quando se refere à Turdetânia:
«Com efeito, nem ouro, nem prata, cobre ou ferro, em nenhuma parte da
terra, nem de tanto nem de tão bom se falou até agora» (Estr. III, 2, 8). A
abundância era tão grande que usavam tonéis de prata (Estr. III, 2, 14).
Estrabão informa-nos
ainda da localização dos principais centros urbanos da Turdetânia: «Os indígenas, conhecedores da natureza da
região, e sabendo que os esteiros podem servir para o mesmo que os rios [refere-se
às trocas comerciais] construíram as suas
cidades e povoados nas suas margens, como o fazem nas ribeiras dos rios. Assim
foram fundadas Asta, Nabrissa, Onoba, Ossónoba, Mainoba e outras mais»
(Estr. III, 2, 5).
Estrabão localiza a
cidade de Conistorgis em território céltico (Estr. III, 2, 2). Se bem que ainda
não seja conhecida a sua localização exacta, esta povoação deveria situar-se no
Baixo Alentejo ou em região a nordeste da Serra do Caldeirão (Arruda e
Gonçalves, 1993, 456).
Em relação à
localização do Promontório Sacro, Plínio (século I d.C.), contribui, de algum
modo, para alimentar alguma confusão sobre a sua localização (Guerra, 1995, 35,
96). Primeiro, porque distingue dois cabos: o Cabo Cúneo e o Cabo Sacro; depois
porque os situa entre os lusitani que
ocupavam uma área compreendida entre as desembocaduras do Tejo e do Guadiana
(Plínio, IV, 116; Berrocal, 1992, 40). No entanto, o texto é mais clarificador
quando os relaciona com cidades junto a rios ou a outros acidentes naturais, o
que permite considerar seguramente o Sacrum
Promontorium na costa algarvia ao nomear, de Norte para Sul: Olisipo, Salacia, Merobrica, o Sacrum
Promunturium, o promontório Cúneo, e os oppida
Ossonoba, Balsa e Myrtils
(Plínio, 116).
Pomponio Mela, por sua
vez, localiza Lacobriga e Portus Hannibalis, perto do Promontório
Sacro (Pompónio Mela, De Chorogr.
III, 7), devendo, pois, admitir-se uma ligação entre estas localidades e Mirtili, Balsa e Ossonoba no «Campo Cúneo».
Da costa algarvia
Ptolomeu refere, como já anteriormente dito, apenas Balsa (Luz de Tavira), Ossonoba
e Lacobriga (Lagos), e, entre as duas
últimas, situa Portus Hannibalis (Mela,
III, 7). Enquanto Lacobriga é
referenciada por Plínio entre as populações célticas (V. Mantas, neste
catálogo), Portus Hannibalis parece
sugerir uma fundação cartaginesa (Bendala Galán, 1990, 26; Alarcão, 1990, 432).
Vasco Mantas defende
que parte do barlavento algarvio dependesse de Lacobriga e que o território de Ossonoba,
município promovido no tempo de César (Alarcão, 1985, 104), passasse entre
Albufeira e Lagoa, limitado a Norte pela Serra do Caldeirão (Mantas, 1990,
184).
A Balsa referem-se, pois, Pompónio Mela (Chorogr. III, 7), Plínio, que a integra entre as populações
estipendiárias, designando-a como oppidum;
Ptolomeu e Antonino (Itinerário Antonino
425, 6-426, 2). De origem provavelmente fenícia (Mascarenhas, 1978), Balsa parece ter-se tornado num
importante aglomerado pesqueiro dominando um território rico do ponto de vista
agrícola e mineiro (Mantas, 1990, 198-199). Jorge de Alarcão admite mesmo que Balsa poderá ter obtido o estatuto de municipium (Alarcão, 1985, 104).
Do Algarve temos, pois,
uma visão mítica da maioria dos escritores gregos e, à medida que o Império se
vai consolidando, as descrições vão-se tornando cada vez mais realistas,
contribuindo para uma melhor identificação do espaço físico e das populações
que nele habitam.
Séculos mais tarde, veremos esse Santo a quem Lisboa dedicou a sua primeira cristianizada ter como lugar de partida o Promontório Sagrado. Para Lisboa terá sido levado em barcaça conduzida por dois corvos, essas aves com capacidade de dar e retirar a visão, a luz, viu neles o símbolo que havia de guardar para a cidade.
Fotografia a partir de:
http://www.museudearteantiga.pt/colecoes/pintura-portuguesa/paineis-de-sao-vicente
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Ilustrações
Fig. 1 — O
promontório de Sagres.
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