quinta-feira, 23 de julho de 2015

Ainda a propósito de Troia, Filomena Barata

partir de: Património, Setúbal na Rede
por Maria Filomena Barata
(Liga de Amigos de Miróbriga)

                 Fotografias aéreas da Península de Tróia, 1966, gentilmente cedidas por Rui Torrinha. 


                                                                     Rua da Princesa, Fotografia Filomena Barata
A Real Sociedade Archeologica Lusitana, nascida em 1849, sob a protecção de D. Fernando II, (o qual por reconhecimento lhe faria conceder o título de “Real”) e o empenho do Duque de Palmela, entra em declínio após a morte deste último, pois perde um grande financiador das escavações.
Em 1863, funda-se em Lisboa a “Real Associação dos Architectos Civis e dos Archeologos Portugueses”, de que provém a actual Associaçäo dos Arqueólogos Portugueses.
António Cavaleiro Paixão nas Ruínas de Tróia
Em 1867, quando já praticamente extinta a Real Sociedade Archeologica Lusitana, afirma Almeida Carvalho: “Do Governo não vinham nenhum auxílio, nem um simples toro de pinho, para conter as areias, tirado das matas do Estado.”
Era o fim das românticas incursões da Sociedade pois à falta de condições, vieram juntar-se o “esmorecimento de alguns e a indiferença da maior parte.” E, malogradamente, o Museu previsto nos estatutos nunca veio a fundar-se.
E, contudo, o carácter percursor dessa Sociedade e da sua proposta de criação de um Museu local de carácter monográfico foi sobremaneira salientado, nomeadamente por Teixeira de Aragão que defendia a “descentralização” das instituições de índole educacional e formativa, nomeadamente os museus locais.
Aliás, o final da centúria de oitocentos, assiste a um acrescido interesse relativamente à museografia regional, sendo de salientar as posições defendidas por Gabriel Pereira e Joaquim de Vasconcellos (GOUVEIA, 1985).
 É de Carlos Ribeiro uma das melhores descrições das cetárias de Tróia. Escreve este autor, em 1858:
 “Proximo do Cabedelo e defronte da Setubal ha uma depressão por onde entra a maré e a que chamam a Lagoa.
É na margem direita desta lagoa e separada do Sado onde se encontram numerosos restos da antiga povoação e oficinas de salga de peixe.
Os tanques de salga mostram-se numa extensão de perto de 4 Kilometros proximadamente a contar da ponta N.O. da lagoa formam grupos separados por porções de praia sem vestígios destas contracções, no entanto as que se vêem são numerosissimas.
Cada grupo conta de um indeterminado número de aqueles tanques dispostos em series ou linhas perpendiculares à praia; cada linha compunha-se pelo menos de cinco tanques, hoje raros são os que apresentam este número, por estarem desmoronados pela acção das águas do rio e maré ou por se acharem cobertos pelas areias.
Os tanques afectam em geral uma mesma forma e têem uma mesma construção; mas variam muito nas dimensões da sua secção (….)
Toda a rocha empregada nestas construções é o grés e conglomerado vermelho do Alto do Viso. Também se vê ali o calcareo da Serra da Arrabida na alvenaria.
O interior das divisorias é alvenaria argamassada: para o lado de dentro dos tanques tem a parede um tal ou qual paramento sobre o qual leva um reboco de beton ou de argamassa signina mui fina com fragmentos muito angulosos (…)
Não pode formar-se ideia do numero de tanques que havia, a avaliar pelo que se vê, e de um modo muito grosseiro, aquele numero devia exceder a dois ou tres mil tanques (…).
Toda a praia na extensão de 3 kilometros a 4 proximadamente é coberta continuamente de tijolos quebrados (alguns inteiros), cacos de telha, de amphora, fragmentos de alvenaria, pedras soltas de calcareo, do conglomerado vermelho do outro lado do Sado e que resultam da demolição dos edifícios que havia deste lado.
Mais para N.O. ou água abaixo, nas visinhanças da capella da Snrª da Troia ainda se vêem: uma casa grande que estava completamente entulhada de areia, cujas paredes algumas delas estucadas conservam ainda as pinturas e umas thermas encerrando uma sala com o pavimento de um belo mosaico – as paredes estão por assim dizer novas.”



Mosaico dos balneários de Tróia. Fotografia Professor Manuel Heleno
Como já em anterior crónica referimos, o espólio da Sociedade Archeologica Lusitana foi depositado na Academia Real de Belas Artes, onde deve ter permanecido até 1904 e, posteriormente foi transferido para o Museu Etnológico Português, sendo, ainda hoje, com o nome de Museu Nacional de Arqueologia, o depositário da maioria do espólio de Tróia, quer documental, quer material.
Desde o início, o Museu Etnológico Português foi fundamental na história das escavações e pesquisas na estação arqueológica de Tróia.
 As intervenções directas no campo – como a escavação da sepultura de Galla –, a publicação desde o primeiro número do «Archeologo Portugues» de notícias sobre este sítio e todas as diligências em relação aos materiais exumados em Tróia são reflexo do empenho que Leite de Vasconcelos, desde sempre, votou a este sítio arqueológico.
 A Tróia estarão, também, ligados directamente todos os futuros Directores do Museu, quer financiando os projectos de investigação, quer através das escavações e publicação dos materiais exumados, a exemplo do Prof. Manuel Heleno, de D. Fernando de Almeida, e, mais recentemente, do Dr. Francisco Alves, no que respeita a pesquisas subaquáticas.

         Professor Manuel Heleno em Tróia. MNA. Levantamento das imagens do arquivo do MNA. Filomena Barata


O Archeologo Português, publicação do Museu Etnologico dirigido por José Leite de Vasconcelos, surge com o seu primeiro número em 1895. “Ruínas de Tróia (em frente de Setúbal)” é o título com que Leite de Vasconcelos assina um artigo sobre este local arqueológico. Para além da problemática relacionada com a identificação de Tróia com a Cetobriga romana, considerando-a despropositada “Tróia nada mais será do que uma designação litteraria dada anteriormente ao seculo XVI ás ruínas; para afirmar isto, fundo-me em que não são estas ruinas as unicas assim denominadas: no termo de Chaves ha outras ruinas a que se dá o mesmo nome de Troia”, o autor faz a análise de um “monumento funerário de forma pouco conhecida, que é a sepultura de Galla”. A lápide funerária e os materiais exumados transitarão para o Museu Etnológico em 1929, por morte do seu proprietário bem como, à época, do terreno onde se situam as ruínas, Sr. Francisco Cabral A. Mascarenhas. É nessa altura de Leite de Vasconcelos os pública, no Archeologo Português, vol. XXVIII.
São também estas as palavras de Leite de Vasconcelos: “No desejo de tornar cada vez mais conhecidas estas ruinas, que bem mereciam ser methodicamente e completamente exploradas por conta do Govêrno, porque d’isso resultaria, sem dúvida alguma, farto peculio scienifico” pois “as ruínas de Tróia de Setúbal constituem um enexgotavel manancial archeologico. Não de dá um passeio pela praia, não se mexe na areia, que não appareça alguma cousa. Oxalá que algum Ministro se amercie d’ellas! Tanto mais que é uma vergonha que esteja a findar o seculo XIX, o seculo chamado das luzes, e Portugal deixe perder para sempre estes eloquentes vestigios de grandeza do seu passado sem lhes prestar o culto que os povos civilizados prestam a tudo o que pode servir para aclarar os problemas históricos.”
No vol. III do Archeologo Português são publicados por Pedro A. de Azevedo os Autos de Visitação à Ermida de Nossa Senhora de Tróia da Ordem de Santiago, e Leite de Vasconcelos escreve uma nota “Escavações Reais em Tróia”, um curioso documento sobre a concepção romântica da actividade arqueológica em finais do século XIX, e também muito interessante pela sua dramática actualidade no que diz respeito à investigação deste sítio até anos próximos dos nossos dias:

Lê-se n’O Seculo, de 16 de Novembro de 1897, que tendo Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Carlos manifestado ao sr. Morgado Francisco Cabral, dono das ruinas de Troia, desejo de obter alguns dos muitos objectos que estão alli sotterrados, o Sr. Cabral mandara immediatamente seis trabalhadores que começaram a fazer escavações no sítio do chafariz da Hortinha, sob a inspecção de El-Rei. No referido jornal, de 17 do mesmo mês, lê-se ainda:
“Continua hoje o Senhor D. Carlos nas suas explorações na Troia. Por enquanto nada de notavel se tem encontrado, a não serem umas quatro moedas antigas, grandes, que elle guardou.”

Diz o autor “Depois d’isto nada mais li sobre o assumpto. Creio que as escavações não continuaram, porque El-Rei se retirou para a sua capital.

Visto o interesse de Sua Magestade mostra peça archeologia, tomava eu a liberdade de tornar a lembrar a grande conveniencia que haveria em mandar proceder em Troia a explorações methodicas e extensas. Quem sabe quantos thesouros scientificos não estarão escondidos sob a areia? E talvez pelo estudo d’elles se pudesse por uma vez decidir onde foi Cetobriga! Em todo o caso, a nossa história antiga tão imperfeitamente conhecida, receberia sem dúvida luz brilhante que a esclarecesse um pouco.”


A “Sociedade Anónima para as Investigações de Cetóbriga”

No período que medeia as últimas intervenções da Sociedade Arqueológica Lusitana e as explorações a que acabámos de referir, encontramos um interessante documento lavrado pelo Tabelião de Setúbal. Trata-se de uma escritura de arrendamento de uma propriedade denominada “da Tróia” que fez o Sr. Francisco Maria Cabral de Aquino Mascaranhas à “Sociedade Anónima Francesa das pesquisas archeologicas de Cetobriga”, pelo tempo de dois anos e meio e pela renda anual de um conto de reis. Do mesmo ano é uma promessa de venda da propriedade “A Tróia” a essa “ Sociedade Anónima para as investigações de Cetóbriga” fundada por M.Blin em 1875, com a importância de 600000 francos. Foi, a primeira sociedade com fundos privados, aplicados na investigação arqueológica, em Portugal.
 Como já referimos, na primeira metade do século XX, Inácio Marques da Costa realizou vários trabalhos em Tróia, nomeadamente na “Rua da Princesa”, tendo registado, se bem que, julgamos, de uma forma algo “poética” as plantas, alçados e mesmo os motivos decorativos.


Marquês da Costa descreveu um baptistério, de que actualmente não resta qualquer vestígio, da seguinte forma:
 “Tais são as ruínas dum edifício ou casa em forma cilindrica, com toda a face interior da parede estucada e pintada a fresco de vermelho e que toda era coberta com uma abóbada, que devia formar uma elegante cúpula, da qual ainda restam vestígios.

No solo circular desta casa abrem-se quatro piscinas a ocuparem os lugares correspondentes aos quadrantes em que se dividia o dito solo. Alguém tomou erradamente êste edifício como templo dedicado a Vesta e uns nichos, que se vêem abertos na face interior da parede cilíndrica, como destinados a receber estátuas dos deuses.
Nas ruínas de Pompeia têm aparecido edificações, em tudo semelhantes a esta, e a elas se tem atribuído a função de Baptistério”.
Deste investigador, para além das tentativas de reconstituição da zona habitacional conhecida pela “Rua da Princesa”.

Há ainda pormenorizadas descrições da Basílica Paleocristã “compartimento rectangular que em duas paredes contíguas mostra restos de estuque, onde foram pintados a fresco várias figuras coloridas, como grande parte do monograma de Cristo (Crismon) ao centro da parede e circunscrito por uma coroa”.





Deste Crismon hoje desaparecido, não resta senão o desenho publicado por António Inácio Marques da Costa (1857-1933) acontecendo o mesmo com grande parte das estruturas da Rua da Princesa que descreveu e publicou.
Data ainda de finais da primeira metade do século XX o início dos trabalhos desenvolvidos pela Junta Nacional de Educação.
A partir de 1948 realizaram-se várias campanhas, sob a direcção do Professor Manuel Heleno, destacando aqui a escavação que efectuou no conjunto funerário ou necrópole, na margem esquerda da Caldeira.


Orla, Fotografia do Professor Manuel Heleno

Fotografia de mó, Professor Manuel Heleno
Posteriormente, D. Fernando de Almeida promoveu escavações em Tróia com a colaboração de assitentes e alunos da Universidade de Lisboa. A Basílica Paleocristã foi, novamente em 1968 e 1969, objecto de trabalhos arqueológicos , tendo sido publicados os rultados da mesma .
 Ainda sob a orientação de D. Fernando de Almeida e com a participação de Judite e António Cavaleiro Paixão, desenrolaram-se escavações que puseram a descoberto uma área de enterramentos de características únicas em Portugal, das sepulturas de mansae .
Uma outra área sepulcral, centrada por um Mausoléu (ou Columbarium) foi ainda escavada por D. Fernando de Almeida e seus colaboradores.

Mas essa “Arqueologia da Arqueologia” a outros caberá fazer, terminando por aqui este meu testemunho relativamente às Ruínas de Tróia.
 Do numeroso espólio recolhido em Tróia é de salientar a grande quantidade de cerâmica comum, a abundância de ânforas, que atesta a importância industrial e comercial deste Sítio Arqueológico, os artefactos piscatórios, como agulhas de cozer e pesos de rede, bem como a existência de terra sigillata, vidros, moedas, etc.


Zona residencial “Rua da Princesa”, Fotografia Professor Manuel Heleno
 Esculturas, inscrições, capitéis e fustes de coluna, para além do célebre relevo mitraico, constituem ainda parte dos materiais arqueológicos recolhidos em Tróia que, apesar da sua enorme dispersão , estão maioritariamente depositados no Museu Nacional de Arqueologia.
No entanto, desde longa data que se considera desejável associar às ruínas de Tróia um espaço para depósito e mostra do espólio proveniente do Sítio, e ainda criar condições de visita e fruição pública para o local através da criação de um “Núcleo Interpretativo” e de um “Centro de Estudos” sobre Tróia, situação que, estamos crentes, a breve prazo veremos acontecer.

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