terça-feira, 28 de maio de 2019

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Os Gémeos na Mitologia

Filomena Barata

OS GÉMEOS

Macaulay, em seus "Cantos da Roma Antiga", assim se refere à lenda de Rómulo e Remo:

Tão semelhantes eram, que os mortais 
Um do outro jamais distinguiriam. 
Tinham armaduras brancas como a neve 
E brancos como a neve os seus corcéis. 
Jamais forjas terrenas fabricaram 
Tão brilhante armadura, ou em terrena 
Fonte a sede matou corcel tão belo. 
Volta em triunfo o chefe, que nas provas 
Incertas do combate sempre vira 
O calor dos irmãos inseparáveis. 
Volta o navio ao porto, em segurança, 
Desafiando o mar e as tempestades 
Que a bordo estavam os poderosos gémeos.

Aproximando-nos a passos vistos dos Santos Populares e do Solstício de Verão, esses períodos em que cidades saiem à rua e as vilas se enchem de cores e de gente, não quis, contudo esquecer o signo que iniciado já no mês das rosas nos acompanhará até o momento em que o dia será o maior do ano.
Pese não se tratar de um tema estritamente relacionado com a mitologia romana, a que mais me faz sentir à vontade, partilho-o convosco, ciente que um dia lhe voltarei, pois trata-se de um assunto infindável e com expressão em todas as religiões e mitologias.

Segundo o «Diccionário dos Símbolos», coordenado por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, idependentemente da forma como os gémeos são encarados: perfeitamente simétricos, um obscuro e o outro luminoso, um voltado para o céu e o outro para a terra, um negro e o outro branco, vermelho ou azul, um com cabeça de touro e outro com cabeça de escorpião, é um facto que exprimem sempre, ao mesmo tempo, uma intervenção do além e a dualidade de todo o ser ou o dualismo das suas tendências, espirituais e materiais, diurnas e nocturnas.

É o dia e a noite, o Sol e a Lua, os aspectos celeste e terrestre do cosmos e do Homem: o Sol, com a força vivificante dos seus raios, que desempenha genericamente o papel masculino e patriarcal e, por isso foi associado quer a Febos, quer a Hórus; e a Lua, telúrica, é a força feminina e matriarcal que se associa a Cibele, Ísis, Proserpina, que faz desabrochar os frutos e condiciona o crescimento de ervas e plantas.

Também entre os Persas, o Sol ou Ormuzd, enquanto fonte de Luz, representava a Vida, a Saúde e a Fertilidade da terra enquanto criadora de todas as coisas necessárias à sobrevivência do Homem; em contrapartida, à Lua ou Arimânio, atribuíam-lhe forças maléficas; as trevas e a esterilidade da Terra.

Mas como em quase todas as dualidades simbólicas, é através do casamento mistérico do Sol e da Lua; do Céu e da Terra que se pode alcançar a Unicidade Divina.

Podem simbolizar as oposições internas do Homem, da vida e da morte, do divino e do mortal, do bem e do mal, e o combate que ele tem que travar para ultrapassar as oposições, cabendo às forças espirituais da evolução progressiva assegurar a sua supremacia sobre as forças regressivas.

Mas poderão ainda simbolizar a identidade, como se os Gémeos fossem cópias ou duplos um do outro. Aqui exprimem a unidade obtida numa dualidade equilibrada, pois representam o que em todos nós existe de "eu e seu duplo".

Genericamente, os Gémeos aparecem carregados de uma força poderosa, seja perigosa, seja protectora, podendo ser deuses ou heróis, pressupondo-se mesmo que maioritariamente eles fosses fruto da união de um mortal com um deus.

Tal como o número dois que representa o eco, o reflexo, o conflito e a contraposição, os Gémeos assumem, portanto, o dualismo fundamental do ser, até porque o dois é o primeiro número que destrói a unidade, o Um, ou Deus, a Divindade. É o número da alteridade. No fundo, é esse momento brutal em que a criança deixa de ver na mãe como uma extensão de si próprio a ela passa a ser um "outro".

Por isso, intimamente ligado com o arquétipo de Gémeos são as divindades hermafroditas ou andróginas.

O mito do Andrógino, ou signo de totalidade inicial, muitas vezes concebido como ovo cósmico, representa a plenitude da unidade fundamental e primordial onde se confundem os opostos, círculo que contém o princípio e o fim.

É comum a muitas Civilizações e Culturas, como a egípcia, a fenícia, a grega, a indiana, a chinesa, a indonésia ou mexicana.
É através da partição, que cosmicamente se cria ou se diferencia a noite e o dia, o céu e a terra, o macho e a fêmea.

Platão na sua obra «Banquete» relembra o mito do Andrógino, afirmando que o Homem original tinha a forma esférica, integrando os dois corpos e os dois sexos. São estas as suas palavras: « naquele tempo, o andrógino era um género distinto e que, tanto pela forma como pelo nome, continha os outros dois, ao mesmo tempo macho e fêmea».

A própria Bíblia, segundo o Génesis, ao assumir que Eva foi tirada de uma costela de Adão aceita que, na origem, todo o humano era indiferenciado e que o nascimento de Eva mais não teria sido do que a cisão do Andrógino primordial em dois seres: macho e fêmea. O retorno ao estado primordial, à unicidade primeira, em que se inclui a ideia de fusão do divino e humano, é para a maioria das religiões o grande objectivo da vida.

É pois nesta relação unicidade/dualidade que o mito do Andrógino se aproxima do arquétipo de Gémeos, que se encontra também reflectido em muitos mitos e religiões.

Zervan, o deus iraniano que os historiadores gregos traduziram por Cronos, é andrógino e deu origem a dois gémeos: Ormuzd e Ahriman, o deus do bem e do mal, da luz e das trevas.

Nas representações dos sacrifícios dedicados ao deus Mitra, que sendo de origem indo-europeia, obteve grande devoção entre as legiões romanas, aparecem comummente dois irmãos gémeos, um com uma tocha virada para cima e acesa e outro com a tocha virada para baixo e apagada. Isto porque Mitra é irmão gémeo de Varuna, que ocupa o cume do panteão e domina os céus, e Mitra é o deus da luz, representando dois aspectos dessa mesma luz eterna, a síntese da luz solar e lunar. Mitra surge, aliás, como uma espécie de "terceiro elemento", uma divindade mediadora entre duas forças antagónicas, viabilizando o nascer de um novo dia, ou seja, não permitindo que a Lua oculte o Sol.

Entre os Gregos, da Noite, esfera imensa e oca, separam-se, como o desabrochar de um ovo, duas metades: O Céu e a Terra (Urano e Geia,23), de cuja união nascem os Titãs.

Também na Mitologia Grega, as divindades gémeas Apolo-Artemisa situam-se entre os doze grandes deuses do Olimpo. Ambos eram filhos de Zeus, o chefe supremo dos deuses gregos, e de Leto, uma mortal que foi abandonada pelo Senhor do Olimpo quando estava para dar à luz, devido aos ciúmes da sua possessiva mulher, Hera.

Enquanto Apolo é o deus da Luz, do Sol e da Verdade, da vitória sobre a violência, a suprema espiritualidade, Artemisa, é a deusa virgem da vida selvagem, senhora dos bosques e dos montes, caçadora-chefe dos deuses, e era associada à Lua e a tudo o que acontecia na escuridão, sendo mesmo considerada por alguns autores uma divindade cruel e vingativa.

Ainda na mitologia grega e romana encontramos outros gémeos: , filhos de Leda, que eram divindades protectoras dos marinheiros.

As referências que sobre eles chegaram aos nossos dias são um pouco contraditórias. Por vezes, apenas Pólux é considerado como divino, enquanto Castor não passa de um simples mortal, devendo uma espécie de meia imortalidade ao facto de o seu inseparável irmão Pólux não ter suportado a sua morte e ter resolvido partilhar com ele a imortalidade. Nessa versão, Leda, a mãe, e o seu esposo Tíndaro, rei de Esparta, terão tido dois filhos, como quaisquer outros mortais, um deles Castor. Só que o deus Zeus, disfarçado sob a forma de um belo cisne, terá cortejado Leda e desta relação teriam nascido outros dois filhos, estes sim imortais: Pólux e Helena, a bela heroína de Tróia. No entanto, e apesar de filhos de pais diferentes, é comum referi-los como nados de um ovo de Leda e filhos de Zeus ou Dióscuros.

Não obstante, muitas vezes eles foram designados ambos como «filhos de Zeus», tendo os dois atingido a imortalidade, se bem que, em muitas versões, ela seja dividida, pelo que alternadamente vivem entre o Céu e a Terra.
Enquanto Castor era considerado um exímio domador de cavalos, Polux celebrizou-se como bom lutador. Na maior parte das histórias consta que estas duas divindades viviam metade do tempo na Terra e outra metade no Céu, denotando bem a ambivalência com que foi tratada a essência destes dois irmãos que são considerados gémeos.

Esta situação pendular ou ambivalente de viagens simbólicas entre a Terra e suas entranhas é, aliás, comum a outras divindades, a exemplo Proserpina, divindade "lunar" do mundo subterrâneo,"horrível pelos seus uivos nocturnos", de que aqui já faláos, pois esta divindade, filha de Zeus com Demetra foi raptada por Hades o deus dos mortos que fez dela a sua esposa. No entanto, ela vive parte do ano nesse mundo das "entranhas da Terra" e outra parte à luz do Sol.
Regressando aos Gémeos Castor e Pólux , relembro que a morte de Castor se deveu a um confronto com uma outra dupla de gémeos, Idas e Linceu, seus primos, a quem tentaram roubar as noivas.

Por seu lado, a dupla gemelar Rómulo e Remo simboliza, de algum modo, os gémeos em oposição. Rómulo e Remo são filhos de uma união ilícita entre Reia Sílvia e o deus Marte, que a seduziu. Por ter tido esta relação foi castigada por seu tio, o rei Amúlio, que se tinha apoderado do poder, aprisinonando o seu próprio irmão. Isto porque, tendo em vista afastar a eventualidade de ela ter algum descendente ao trono, o seu tio Amúlio havia obrigado Reia Sílvia, que era filha do legítimo rei e herdeiro do trono, o seu irmão Numitor, a consagrar-se ao culto de Vesta que exigia a castidade e, por isso mesmo, inibia a maternidade. Por ter faltado ao voto de castidade foi condenada à morte e os dois gémeos foram expostos num cesto de vime junto ao rio Tibre. As águas revoltas do rio contribuiram para que o berço tivesse sido levado para o sopé de uma das colinas da futura Roma, onde uma loba os descobriu e alimentou com o leite dos seus seios.


«Estátua da loba capitolina que, segundo a lenda, teria amamentado os gêmeos Rômulo e Remo. - Museus Capitolinos em Roma»
Mais tarde, um pastor, Fáustulo, e a esposa Aca Larência, criaram-as e instruíram-os.

Chegados à idade adulta, Rómulo e Remo, dedicaram-se à pilhagem e roubaram algumas cabeças de gado do próprio rei Amúlio. Remo foi preso e Rómulo, em sua defesa, acabou por matar o rei usurpador, e repôs no trono o seu avô Numitor.

A dificuldade fundacional e simbólica da cidade de Roma deve-se também ao facto de os dois irmãos serem gémeos que decidem dar à interpretação dos auspícios diferentes significados, tendo entrado em disputa a propósito da localização e das condições da fundação da futura Roma. Deste modo, Rómulo escolheu o Palatino e Remo escolheu o Aventino e ambos foram proclamados reis ao mesmo tempo, tendo originado o conflito que acabou por conduzir à morte de Remo e à subida ao poder de Rómulo.

Segundo uma das lendas da fundação de Roma, Rómulo influenciado pelos oráculos acabou por traçar com a charrua um sulco que delimitava o recinto da futura Roma, proibindo Remo de o transpor. Porque Remo não escutou a advertência de Rómulo, acabou por sucumbir às mãos do próprio irmão, que ficou senhor único de todo o território.

Pese o assassínio do seu irmão Remo, Rómulo acabou por ser divinizado com o nome de Quirino, tendo sido ficado eternamente ligado à fundação de Roma.

Por vezes são representados um com a cabeça de touro, também ele uma força genésica e primordial, e outro com a cabeça de escorpião.

Simbolicamente o significado desses dois gémeos é o mesmo: o branco e o negro; a luz e a escuridão, o dia e a noite.
Mas existem muitas outras referências a gémeos em diversas religões antigas.

Na Bíblia, logo no Génesis, encontramos dois Gémeos: Tamar, nora de Judá, engravida do sogro, tendo-se disfarçado de meretriz. Quando estava a dar à luz, uma das crianças estendeu a mão para fora e a parteira coloca-lhe um fio escarlate, dizendo: é o primeiro. Mas a criança recolhe a mão e o irmão acaba por nascer primeiro; este foi chamado Farés, tendo o segundo o nome de Zara (Génisis, 38, 28).

Segundo uma interpretação simbólica desta referência bíblica, as crianças simbolizam o Sol e a Lua, que sai e volta a entrar para deixar passar o Sol em primeiro lugar.


No signo do Zodíaco, representado genericamente por duas crianças de mãos dadas (se bem que haja zoodíacos que figurem um homem e uma mulher ou dois amantes,23), os Gémeos são símbolo geral da dualidade na semelhança e até na identidade e a imagem de todas as oposições interiores e exteriores, contrárias ou complementares, que se resolvem numa tensão criadora.

E não é por acaso que a fase dos Gémeos se completa desembocando na eclosão do Verão. E também por isso mesmo que Gémeos seja o signo da diversidade, da comunicação e do movimento constante, caracterizando-se por uma grande compreensão da vida, enorme capacidade para a integração, necessidade de relativização e de uma constante conceptualização da vida e das coisas.

Mercúrio, o planeta regente de Gémeos, é o vizinho mais próximo do Sol, e o planeta mais rápido. Por isso a sua associação à divindade mitológica com o mesmo nome, deus dotado de asas nos pés, mensageiro do Olimpo que «voava tão célere como o pensamento», deus astuto e arguto e protector dos comerciantes e dos ladrões.

Mas Mercúrio é também o metal líquido que representa na tradição hermética ou alquímica o princípio e o fim da Obra, o Mercúrio que tudo contém antes da separação dos seus compostos.

A carta do Tarot correspondente aos Gémeos, a carta 6, é «o Amoroso» ou «Enamorado». Nessa carta é representado um homem entre duas mulheres encimado pelo deus Eros ou Cupido com uma flecha. O significado geral dessa carta é a ideia de encruzilhada, que inclui tensão, hesitações e ambivalência. As duas figuras femininas apontam para a necessidade de uma escolha entre a virtude e o vício, o bem e o mal, o passado e o futuro.

Saibamos, pois, ver nos Gémeos a síntese da Vida, com tudo o que ela nos testa de bom e de mau!


Filomena Barata tem Licenciada em História e é Mestrada em Arqueologia. É colaboradora do Projecto Portugal Romano.

Imagem 1 - Lápide dos «Gémeos Siameses», Capela de S. Brás, Castelo Branco, publicada no artigo «UM PARTO PRODIGIOSO EM CASTELO BRANCO NO SÉCULO XVIII» da autoria de Pedro Miguel Salvado (a quem agradeço,23), editado na Revista «Medicina na Beira Interior», nº8,1995, e dado também a conhecer por Joaquim Baptista no Blogue "Epigrafia Portuguesa do Distrito de Castelo Branco".